Por uma fé contraproducente (Em blogs parceiros - III)



Recentemente eu tive um ataque de pânico dentro da igreja. Logo após a uma pregação que fiz.
Suor frio, desconexão das pessoas a volta, claustrofobia, choro descontrolado, sensação de desmaio e falta de ar.
Uma sensação de vergonha, de estar mostrando fraqueza para meus irmãos. Ao surgirem as lágrimas, rapidamente saí do ambiente e vivi um sentimento terrível de fracasso. Fracasso como exemplo espiritual, fracasso como uma teóloga, fracasso em todo meu avanço terapêutico, fracasso. Toda minha confiança nos irmãos e na experiência orgânica de minha igreja pareciam desaparecer dentro de um sentimento tão maior de fragilidade.  Mesmo ouvindo elogios de minha pregação, me senti fracassada porque eu estava passando por momento de fragilidade psicológica que me tirava toda a confiança.
Após essa experiência passei por um processo de refletir sobre o sentido desse surto. Em 2014 eu realizei uma pesquisa com acerca do sofrimento do trabalho pastoral e, nas entrevistas, muitos relatavam perda de dentes, bruxismo, dores articulares, conflitos familiares e outros sintomas relacionados diretamente ao estresse. Todas essas categorias estão próximas do conceito de Burnout, um diagnóstico comum para algumas profissões como a de professores, a qual o profissional simplesmente “Pifa”. Conviver com uma pessoa em processo de burnout é ver como o estresse consegue suprimir nossa capacidade cognitiva e física. A pessoa fica fraca, sem ânimo, com dificuldade de atenção, irritável e, dependendo do grau pode desenvolver um transtorno permanente como a depressão.
Como já dá para ser percebido, crises ansiosas, burnout, depressões, síndromes do pânico não são sintomas pontuais de uma ou outra pessoa. São sintomas de uma percepção mais profunda do que chamamos de sofrimento do trabalho (Dejours) ou da atividade (Clot). Tanto o conceito de trabalho como de atividade em cada um desses autores expande do que seria somente a atividade financeira do indivíduo, mas a partir de uma relação de produtividade, daquilo que é a realidade social do trabalhador, que o constitui como sujeito e identidade. Assim, quando eu, Rebecca, digo que sou psicóloga, isso não é só minha profissão, mas minha identidade. De modo similar, quando digo que sou cristã, que tenho certo posicionamento político, ele fala sobre uma crença/atividade/sentido que me constitui. E todo trabalho, podendo ser financeiro ou não, é dialético de prazer e sofrimento. Prazer de sentir-se útil para a sociedade a partir daquilo que fui engajado e sofrimento pelo investimento de tempo, frustrações e por vários motivos sociais que são cruciais.
Não é possível se falar de sofrimento pela atividade sem contextualizar como o estado, o país e todo o nosso mundo constrói a ideia do trabalho e como isso está encrostado em nós de modo que, mesmo em ambientes a qual estaríamos buscando “resistência”, acabamos repetindo certos padrões.  As relações humanas dentro do capitalismo estão, sempre, vinculadas a nosso poder produtivo. Enquanto seres produtores somos capazes de produzir um pequeno capital e, consumidores, ter melhor qualidade de vida. No capitalismo nascente, alguns destes produtores teriam maior capital – pelo trabalho ou por herança social – e possuiria alguns empregados que a princípio tinham nenhum direito trabalhista e foram lutando por tais ao longo do tempo. Então, em 1914 temos a conquista das 8h de trabalho nos EUA, salário mínimo (1934 no Brasil) e a CLT (1943 no Brasil) veio com o intuito de humanizar os trabalhadores que só eram vistos a partir de sua produtividade. Além disso, direitos públicos começaram a se desenvolver até que em 1988, no Brasil, tivéssemos nossa Constituição Cidadã, que possibilita, por exemplo, o Sistema Único de Saúde, a qual demonstra que qualquer pessoa, independente de trabalhar ou possuir dinheiro, deve ter acesso a saúde a qual o estado deve oferecer. Os direitos humanos, no períodos pós-guerras mundiais, vieram propor que qualquer pessoa deveria possuir dignidade, independente de características de raça, sexualidade, gênero, deficiência, mas principalmente financeiramente. Contudo, o avanço desses direitos andou ao lado da globalização e do processo de liberalização do capitalismo, de modo que a concorrência mundial, ampliada pela tecnologia e pela centralização nos Estados Unidos das Américas, começaram a ver com maus olhos o avanço de tais possibilidades dentro do âmbito trabalhista.
Assim, o liberalismo e o neoliberalismo globalizados atuais tentam nos convencer de modo sutil de que a educação, a saúde e outros direitos públicos são coisas contraproducentes, que podem abrir brechas para um possível comunismo e de que são estes que quebrarão o país. Os trabalhadores deveriam se preocupar menos em manter esses direitos, pois seriam privilégios dentro de um momento de recessão. Consequentemente, o que antes era uma busca por dignidade, se tornou um inimigo público a ser combatido. E, associado a isso, temos a dissoluções de grandes referências políticas, sociais e religiosas. Os partidos, a família, as relações sociais e as grandes religiões entram nesse mesmo processo individualizante, utilitário, produtivista e, quando vemos, a dignidade de um sujeito deixa de ser um a priori para ser uma luta constante e que sempre tem que ser provada. Uma das consequências disso é o crescimento de grupos identitários, a qual se unem ao mesmo tempo como uma forma de construir uma luta social, mas também para se protegerem dentro de um mundo de desvalorização do sujeito (Sawaia, 1999).
Então, isso chega a esta questão: nós somos forçados o tempo a nos mostrarmos dignos de nossos feitos, e, mais do que isso, do que somos. As duas formas que o capitalismo nos dá como opções para mostrar essa dignidade e através do consumo e através de uma produtividade, ambas fetichizadas.
Não basta consumir, mas consumir produtos que podem ser mostrados e interessantes para outros. Um exemplo dentro do cristianismo: eu posso me mostrar como teóloga a partir das fontes que eu uso, da linguagem que eu obtenho, das minhas vestimentas e locais que eu vou. Se eu digo mito, vejo Augusto Nicodemus ou Franklin Ferreira sou reconhecida de um modo digno a uma população. Se eu falo lacre, vejo Henrique Vieira ou Caio Fábio, sou reconhecida por outros cristãos. E, ainda, se leio Silas Malafaia e falo “gayzismo”, sou reconhecida como um cristã por outros. Nunca é pelo que sou espiritualmente, mas pelo que consumo. E isso está muito errado. Quando perguntado sobre as pessoas a qual Jesus andava, pecadores, prostitutas, publicanos e de diversas expressões religiosas, diz que o feliz é aquele que não é escandalizado por isso (Mt 6.11).  As populações queriam encaixá-lo dentro de um formato de profeta, seja Elias, João Batista, ou outro (Mc 8.27), mas não só Cristo se recusou essa categorização como proibiu seus discípulos de divulgar isso. A similitude com um ou outro não importava para Cristo – mas importava para os fariseus. Os fariseus denunciaram Jesus por apontarem ao Império de que este profeta estaria competir com o rei, sendo o rei dos judeus (Jo 19.7). E, por esse detalhe, toda a dignidade profética de Jesus não importaria, mesmo para os judeus messiânicos. Mesmo Paulo reafirmou isso posteriormente quando aponta que somos cooperadores de Deus (1Co 3), independente de preferências de pregadores.
E a outra forma que o capitalismo se utiliza para mostrar dignidade é a produtividade. Esta, particularmente, é muito manipulada dentro do meio cristão e foi o motivo principal para meu surto após minha pregação. Quando Cristo é perguntado sobre as pessoas as quais convivia, este respondeu que “a sabedoria se mostra a partir dos frutos” (Mt 11.19). Apesar do avanço no conceito de obras com a reforma protestante, a noção de frutos está relacionada diretamente a algo que se faz publicamente para provar sua fé a outros. E, por ser algo a ser julgado por outros, tem que ser constantemente apresentada conforme os outros vão entender como bom. Os parâmetros se tornam a publicidade de nosso trabalho e não os frutos do espírito (Gl 5.22). O quanto você prega, sua vitalidade de evangelismo e em atos bem visíveis são o que a população cristã considera um cristão frutífero. Em todas as redes sociais você deve provar o tempo todo que você é cristão por meio de orações, palavras positivas, ações sociais públicas e, sendo estas redes presentes o dia inteiro das pessoas, a cobrança se torna ainda mais intensa. Se é pastor, de uma conduta moral impecável. Se de um evangelista, de um número de convertidos crescente. Se é um teólogo, de palestras, artigos, escritos proféticos e atuação pública em todos os momentos de sua vida. Assim, como teóloga, não aguentei. Somos mais do que isso que demonstramos fazer. Pois, todo o trabalho de base, no cuidado da igreja diário, não é visto. E essa é uma característica extremamente relacionada ao capitalismo. O trabalho que dignifica o ser humano não é o trabalho pesado do agricultor que acorda cedo, do padeiro, carteiro ou da doméstica. O trabalho engrandecido pela sociedade é aquele que, às vezes, trabalha apenas duas vezes por semana e ganha 20 mil reais por mês. O trabalho fetichizado, que não representa a atividade da maioria dos trabalhadores. Da mesma forma na igreja, o trabalho espiritual não é valorizado. Raras são as igrejas que valorizam as mulheres e homens que oram, limpam, cozinham ou que lidam com todas as partes burocráticas duras de uma comunidade. O glamour da pregação suntuosa, dramática, teatral é o que chamamos de fruto espiritual.  Visibilidade é a base desse fruto.
Porém, a dignidade de um cristão não deve estar na sua aparência e no que diz fazer. Jesus conta a parábola do publicano e do Fariseu (Lc.18.9-14) para demonstrar aquele que consome a religiosidade e demonstra um trabalho espiritual melhor para dizer que este não é o que terá a oração respondida. Então, em meio a essa sociedade em que ser fariseu é o verdadeiro cristão, quero ter uma fé não contraproducente, quero ser publicano.

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