O monstro que mora em todos nós





Durante minha infância tive muitos amigos imaginários de vários tamanhos, formas e complexidades. Neste havia alguns monstros, acolhedores e assustadores, que me compunham nesse universo interno que criei somente para mim. Eu era uma criança muito introspectiva e tinha muito medo do mundo – provavelmente era muito mais monstruoso do que minha imaginação conseguia chegar. 

Quando cresci, pensei por um bom tempo em estudar sobre o fenômeno dos amigos imaginários, mas acabei estudando religião que, sendo bem sincera, é uma forma culturalmente aceita de expressar muito do que está somente em nossa imaginação. A religião conseguia acolher esses monstros e elaborá-los de forma bonita e adequada a sociedade.

Mas continuam sendo monstros.
Por um acaso da leitura bíblica anual estou lendo a história de dois assassinos: Paulo e Davi.

O primeiro perseguia um grupo religioso e testemunhou diversos assassinatos horrendos, de modo a ser extremamente temido pelos cristãos. Depois, foi um missionário controverso, que brigava com outros irmãos de fé, vivia com um espinho na carne, foi preso e sofreu diversas violências nesse processo – naufrágio, picado por cobra etc. Uma vida horrível, de muito sofrimento do que este fez e que recebeu. O segundo, nem se fale. Matou um companheiro para roubar sua esposa, omitiu-se no estupro da filha, assassinou muito em guerra, fez o censo para saber o quão poderoso era. Do mesmo modo, perdeu filhos mortos e assassinados de forma cruel, foi repreendido por um profeta de dentro do seu palácio, viveu perseguição por toda vida. Dois demônios, homens idolatrados, um até segundo o coração de Deus.

Por muito tempo, não entendia esse Deus apavorante. Quando fui abusada sexualmente, aos meus 13 anos, por um homem mais velho, ”amigo” meu, me perguntei que Deus é esse que me pede para perdoar essa pessoa. Que Deus é esse que acha minimamente aceitável que essas violências aconteçam a ponto de não impedir? Eu achava que qualquer ser humano em sã consciência se soubesse do que eu vivi tentaria me ajudar.

E foi ai que eu estava errada.

Aquele homem não era um louco, era apenas uma pessoa socializada numa sociedade patriarcal e que internalizou muito bem seus conceitos – mulheres de roupa curta, que estão se dispondo a sair com homens mais velhos querem sexo. “Estou fazendo um favor para você”, em suas palavras, que eu me lembro. Seus amigos, não, não eram loucos. Aliás, mesmo que fossem “loucos”, no sentido psiquiátrico do termo, não estavam fazendo uma coisa que a sociedade não aceita. A lei pode até não aceitar, mas a sociedade sim.

A sociedade aceita muito bem o fato de existir pessoas que não possuem o que comer. Não perdemos o sono, mesmo sabendo que o Brasil está voltando para o mapa da fome e que pessoas vão morrer assim. Não por falta de comida, mas porque a sociedade está muito bem estruturada e tenho um bom pão no café da manhã.  É completamente aceitável que você já tenha visto centenas de moradores de rua, pessoas que tem que dormir no chão com ratos, sujeira, sem lugar de fazer as necessidades fisiológicas, completamente abandonadas pelo Estado.  É nem um pouco um escândalo ver um homem sujo fedendo a fezes na rua enquanto eu tomo banho todo dia. Não por falta de casa ou água para banhar, mas porque não me afeta. Dar alguns reais consegue aliviar nossa mente de ter um lugar para viver é um privilégio.

Nós estamos nem ai, de verdade, se o que vestimos tem trabalho escravo e pessoas extremamente vulneráveis estão morando em pequenas caixas com máquina de costura. Não me espanta se eu vou ao shopping e vejo uma senhora de setenta anos, negra, limpando o chão que eu andei. Nunca foi um problema o fato de vivermos no Brasil graças a um extermínio de indígenas que ultrapassa – e muito – o holocausto judeu. Afinal, preferimos colocar nomes de ruas de assassinos do que nossos antepassados indígenas.  Nós temos a coragem de toda semana ter caminhão de lixo em um momento que o mundo sequer tem mais espaço para tanto lixo, a ponto de poder destruir totalmente o planeta. Nossa mente rapidamente sente-se “ok” se em um dia levamos a ecobag para a feira. Agora está tudo bem, não sou esse monstro que vai destruir o planeta. Passamos todo dia por favelas, lugares extremamente precarizados, onde a maioria é negra descendente de escravizados que, ainda hoje, recebem muito menos que qualquer pessoa branca. Nós aceitamos a exploração de mulheres por cafetões e glamorizamos a violência que boa parte destas sofrem, fingindo que é uma escolha delas. É razoável uma família excluir um filho da convivência familiar, agredir e até matar se ele quiser beijar na boca outro homem. É razoável achar que uma menina que procura homens mais velhos pela internet para sair está desejando transar.

E novamente chega em mim. Provavelmente você não faria nada também. Se fosse muito sensível, iria chorar. Duvido que mais do que isso, afinal, quantas vítimas você conhece? Quantas notícias você sabe, semanalmente? Nós todos somos monstros.

“Ah, mas a culpa é da nossa sociedade, ela é doente, o mundo jaz do maligno”. Se você não é um extraterrestre, você é a sociedade também.  Provavelmente, alguma dessas coisas você se identificou.

Isso, sem nem chegar as pequenas violências do dia-a-dia. Eu, Rebecca, não sou honesta com todas as pessoas. Eu já menti muito, ainda minto e ainda vou mentir nessa vida. Sou muito agressiva, a ponto de quase perder as pessoas que mais amo na minha vida por causa disso. Eu já gritei, descompensei diversas vezes. Tenho inveja de algumas pessoas. Desejo pessoas que não deveria desejar. Sou apegada ao meu dinheiro. Enfim, você sabe alguns defeitos meus e tenho muitos outros.  Você escolhe se quer estar ao meu lado sabendo tudo isso.  Eu só consigo criar monstros na minha imaginação porque existem as possibilidades monstruosas dentro de mim. Coisas que se fosse para confessar o pecado um para o outro, de verdade, não sei se teria muitos amigos.

Mas, se os monstros existem – e todos nós somos - o que fazemos com eles?
Nós cuidamos deles.

Parece ridículo, não? Mas é assim. Cuidamos, mas cuidamos de verdade. Nós o chamamos para mudar, todo dia um exercício diferente. Todo dia, um pensamento que não era comum.  “Hoje não vou mentir”, “hoje não vou deixar de ir naquela manifestação”, “Vou separar uma porcentagem maior do meu dinheiro para doar em vez de comer fora”, “Vou pesquisar e parar de comprar coisa de trabalho escravo”, “Farei uma palestra sobre violência contra mulher na minha igreja”. Todo dia, assim teremos uma crença diferente, uma relação diferente, amizades, relações políticas e, enfim, um mundo. Como canta a oração de São Francisco de Assis: “A começar em mim...”

E foi exatamente isso que Deus me ensinou. Deus cuidou de mim quando ninguém mais estava lá, Ele se dispôs a me ajudar, a mudar minhas relações, a não ter raiva, a perdoar. Isso está no cerne de todos nós, monstros. Davi escreve “Cria em mim um coração puro e renova em mim um espírito inabalável” (Sl 51.10) porque ele sabia que não prestava, que o coração era ruim e o espírito era instável. Na carta de Gálatas, capítulo 2, versículo 20, provavelmente foi Paulo que falou que morreu com Cristo e que ele não vivia mais, mas Cristo. Por quê? Porque ele sabia do mal que era capaz de fazer.

Deus floresce em nós monstros melhores. É metanóia, nova vida, sim, mas não é tão simples. Só deixaremos de ser monstros no céu (ou será que seremos apenas monstros bonzinhos lá?). Deus perdoa aquela sombra escondida em nós, que nos tira a vida abundante. Traz a tona o que nós temos de mais bonito. Ele limpa, bota um laço no monstro, chega a ser constrangedor, mas é o amor de Cristo (2 Co 5.14). Dá vergonha porque quando sabemos que erramos, queremos nos esconder, mas é assim mesmo que Deus quer. Sendo nós ainda pecadores (Rm 5.8)

Eu, Rebecca, sou abençoada de saber escrever. Escrevo para ajudar outros. Sou uma pessoa leal, sincera e amiga. Dou a vida pelas pessoas que amo. Guardo muito bem segredos e perdôo com facilidade. Eu gosto muito de doar. Sempre tento mudar quando apontam um erro meu. Não me acomodo com meus defeitos e dificuldades. Sei cozinhar algumas coisas e algumas pessoas me acham engraçada. Eu prego, dou aula de bíblia, estou ajudando um grupo de feministas cristãs que me traz muita alegria. Estou plantando uma igreja. Me manifesto sempre que possível contra a desigualdade do mundo. Sou monstro com um lacinho. Não serei mais do que isso.

E que Deus nos abençoe mesmo assim.

Arte:Shaun Tan

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