Conto: O nome do Éden


[O beijo do Klimt para ilustrar meu conto]



     Sono de uma noite mal dormida, uma cama que não era minha, talvez fosse essas as experiências mais próximas do que eu estava agora. Dias passados que não lembraria mais.
Um local diferente, com cores jamais vistas, animais livres, natureza exuberante e uma multidão de pessoas nuas, de peles incríveis, naturalidade contagiante. Quando acordei, vi todo esse quadro exuberante, que provavelmente passei alguns minutos só observando tanta beleza junta.Por último, me percebi: uma mulher nua, cheia de terra por cima, com o meu corpo do jeito que sempre sonhei. Mas... Quem sou eu? Dificilmente conseguiria explicar o que senti. Eu tinha certeza de que era eu, me identificando, mas não conseguia recordar absolutamente nada. Tentei lembrar-me durante algum tempo, sem o menor sucesso até eu perceber que uma pessoa, outra mulher, estava me olhando, como se esperasse para falar comigo, rindo-se sozinha ao analisar minha situação.
            - Você é nova aqui. Precisa de alguma informação? – A belíssima mulher de quase quarenta anos que me via aproximou-se de mim, enquanto eu ainda refletia sobre aquele estado. Seus cachos divertidos escondiam um pouco o olhar sobre mim.
            - Sim, muitas. Primeiramente, o que aconteceu? Por que estou cheia de terra? – Aliás, aquela terra por todo meu corpo incomodava profundamente. Não porque a terra me parecia nojenta, pois não era, mas sim devido ao fato de querer ver mais de como estava meu corpo.
            - Ah, sim! Chegou hoje. Você faleceu de ditosa velhice. Mais de noventa anos! Era uma mulher dedicada, amorosa e de muita fé. Apesar de religiosa, a senhora foi muito sincera na sua crença, uma católica singela. Então, seu caminho óbvio era vir aqui ao Éden. E, como de práxis, ao chegar aqui Deus refaz seu corpo, de terra. Ele decide mais ou menos dentro do que gostaria que fosse seu corpo, junto com o que você gosta também. Afinal, Deus é muito legal.
            - Ah. – Eu me confundia em olhar as milhares de coisas que haviam a volta e pensar nas diversas informações oferecidas. Tudo se embaralhava, por isso demorei a conversar com aquela mulher, que, é mesmo, nem sei quem é. – Qual é seu nome?
            - Manuela! Eu sou um anjo. Na verdade, te conheço tão bem porque Deus me designou para ser seu anjo da guarda. Lembro-me do rosto da sua mãe quando você nasceu. Os olhos mais bonitos que já vi! Transbordava alegria.
            - Um anjo! Não. – Como seria? Ela era uma mulher de quarenta anos, com pelos, uma vagina! Apesar de ser uma senhora lindíssima e que não me incomodava em nada sua nudez, sempre vi aquelas imagens de anjo como homens, de vestes brancas, asas e uma luz enorme. Esses eram os relatos da bíblia e de minha paróquia. – Você é uma humana, sem dúvida.
            - Não mesmo. Eu sou um anjo. É que, aqui no Éden, humanos e anjos são quase a mesma coisa, tem um ou outro papel diferente. Isso você descobrirá depois! Quer que eu te mostre um pouco mais do local? Sei que foste professora a vida inteira, que amava essa profissão! Há um ótimo lugar para ti aqui! – Sendo assim, Manuela me levantou, deixando-me mais confusa.
            - Não, Manuela! Preciso saber mais de mim. – Quis a impedir de me levar e consegui. Manuela parecia me respeitar profundamente. – Qual é meu nome?
            - Maria Julia!
            - Maria Julia? – Estranhei. – Esse era meu nome?
            - Não! Seu nome na Terra era Jurissémia, mas você detestava! Tinha horror! Lembro-me de você pequenininha orando falando que queria mudar o seu nome e, depois, reclamando com Deus porque não tinha mudado!O que você não sabia era que Ele tinha atendido. Seu nome no Paraíso seria Jurissémia, se não tivesse orado. Agora, pela eternidade, serás Maria Júlia, o nome de seus sonhos, já que seu apelido era Ju!
            - Quando eu fiz essa oração? – Que loucura! Se eu soubesse isso na Terra, teria pedido mais coisas para mudar.
            - Você tinha dois anos. No dia oito de Agosto, antes de ir para a creche. Depois de um tempo na Terra você se acostumou com o nome. Seu marido não ligava, pois ele dizia não gostar do próprio nome também, e só te chamava de Ju como seus filhos.
            - Filhos? Marido? – Como eu poderia não me lembrar disso? De fato, por mais que eu tentasse, não conseguiria lembrar.
            - Sim! Um marido, três filhos, cinco netos e, por enquanto, um bisneto. Confesso que certa vez perguntei para Deus quantos bisnetos você teria e ele disse, sabe quantos? Dez! Pena que você não viu. O único que está aqui no Éden é o homem com quem você casou, que faleceu menos de três meses antes de você. Foi uma perda dupla para sua família! Vocês foram casados setenta anos!
            - Meu marido está aqui? – Nossa, casada durante tanto tempo! E eu tive três filhos, netos e bisnetos! Então Manuela desistiu de me levar para conhecer o resto do Éden. Sentamos debaixo de uma árvore maravilhosa cheias de flores de burganville e ficamos conversando, dizendo sobre minha família, do quanto era unida e morou todo mundo em um casarão no interior de São Paulo até que meus filhos quiseram estudar no centro. Um era médico e dois dentistas. O anjo descrevia a casa que eu morava, aonde eu gostava de me sentar. E, o mais interessante, é que eu não sentia falta. Aquilo tudo só me dava curiosidade, vontade de ver suas faces. Manuela dizia que parece um piscar de olhos quanto o tempo passa e as pessoas chegam para o Éden.
            - Sim, seu marido está no Éden. Também foi um homem de fé. – Depois de longa conversa respondeu. – Mas ele não te reconhecerá como você mesma não o fará. Seu nome era Jeremias na Terra, mas pode ser que aqui ele nem tivesse a curiosidade de saber o nome, a história! Muitos são assim.
            - Eu poderia o ver? Sei lá, só o ver. E, enquanto o procuramos, você me mostra o Éden. – Um anseio muito grande de ter o contato direto com ele me veio, como uma prova para que eu acreditasse que fui casada por setenta anos. Quando me via na pele, parecia-me na idade dos vinte, bem jovem, sem memória, confusa em meio a outro mundo.
            - Está bem. Só não garanto que será a mesma coisa. Poucas pessoas fazem isso, querem reencontrar pessoas, tem relações sexuais, beijam, se apaixonam de novo, mas... É tão diferente aqui! Em nada se compara com o que acontece na Terra. Por exemplo, a grande maioria desenvolve outros relacionamentos, estão tão plenas nos novos que não vão atrás dos dias anteriores.
            - Não é que não esteja amando aqui! É perfeito, um sonho! Surge a curiosidade, mais do que propriamente uma insatisfação. – De fato, aos poucos fui me sentindo em casa, completamente louca por aquele lugar. A grama era macia, tudo era belo, de bom cheiro e som. Poderia ficar parada sem nada fazer pelo resto da vida. E, em tudo, Deus estava tão... Ali. Era como se o víssemos face a face.
            - Entendo. Ninguém não ama o Éden. Aqui foi feito para vocês! Aliás, você quer continuar na parte “dia” ou deseja ir a “tarde” ou “noite”? Como aqui não há mudança de tempo, podemos ir até lá quando quisermos.
            Fomos, então, em uma aventura pela caminhada inexaustiva do local mais belo que se pode imaginar. Meus pés nada sentiam! Ao topo das montanhas fomos, procurando por Jeremias, o meu Jeremias, e a vista era da mais perfeita, pura, constrangedoramente profunda. De lá, vi enfim a coisa mais louca que antes esquecera de imaginar.
            - Tem pessoas voando! – Não chegou a ser um susto, mas foi um estranhamento primeiro, pois aonde eu me encontrava, só caminhavam.
            - Você quer voar? Pode escolher o tipo de asa ou até mesmo voar sem uma. De forma parecida acontece nas águas. Há aqueles que amam nadar! Podem colocar barbatanas e até ficar no mar pelo resto da eternidade!
            - Que fantástico! Agora quero procurar meu marido, mas... Com certeza eu quero voar e nadar! Pode ser que ele queira fazer essas coisas comigo. – Já que fomos setenta anos casados, devemos nos dar muito bem aqui.
            - Com certeza! As pessoas aqui no Éden são todas muito abertas a se divertir com os outros. Só ficam sozinhas nos momentos íntimos. Você deve ter percebido isso. – Manuela tinha seus cabelos cacheados naturais e esbranquiçados voando sobre a brisa da montanha que me arrepiava de suavidade. Sim. Eu reparara como todas as pessoas do Éden pareciam tão amigáveis, simpáticas e agradáveis. Pelas muitas que eu passei, tive, diversas vezes, vontade de aproximar, conversar, fazer amigos. Mas, enfim, tenho a eternidade para isso!
            Descendo a montanha seguimos para o deserto e, após, a praia. A areia se encontrava na temperatura certa e o mar era um convite a entrega. Não resisti e me banhei ao lado de Manuela. Outras pessoas que se banhavam entraram na brincadeira com a gente, molhando o corpo, rindo a toa. Diziam seus nomes, nos convidaram para comer quando fosse de minha vontade e, mesmo nunca tendo antes os visto, pareciam os parentes mais próximos que eu poderia imaginar, como irmãos de afeto. Aquilo tudo me encantava!
            Mas nada de encontrar Jeremias.
            Somente quando nós duas seguíamos perto das árvores frutíferas, aonde as vistosas maças, peras e mais diversos alimentos cresciam, vimos um grupo de pessoas que colhiam para presentear outros no Éden. Elas se deliciavam também como se não houvesse fome nem saciedade. Apenas desfrutavam de tanto doce.
            - Provavelmente Jeremias está ali. Vocês, no interior de São Paulo, tinham muitas árvores e ele amava ficar no jardim lendo, colhendo as frutas, trazendo para a sua família. Como, agora, somos todos família, o trouxeram até aqui, aonde serve a comunidade.
            O coração que agora batia mais forte, me impulsiona em direção aquele grupo nu que colhia tão deliciadamente as frutas. Segurei a mão de Manuela como o apoio que, provavelmente, ela sempre me deu ao longo dos anos como guardiã. Todavia, quando o anjo que estava de dedos entrelaçados aos meus disse “é ele ali; lembro-me de seu rosto”, os passos se tornaram mais devagar. Passei um tempo a o observar, ver seus belos detalhes. Se tratava de um homem em seus cinquenta anos, na melhor forma possível. Havia uma barriguinha um pouco saliente, pelos espalhados pelo corpo, mas era o mais belo de todos. Seu nariz, tão peculiar, discretamente pontiagudo, cheirava o pequeno morango colhido do pé e, logo em seguido, sorria como fosse perfume. Não o reconhecia, nem sentia um amor diferente, apenas criei uma simpatia específica que trazia carinho para aquele completo estranho. E, aproximando-me, deixei Manuela para trás,me arriscando a perguntar.
            -Licença... Jeremias? – Perguntei, subindo um nó pela garganta. Sem nem pensar muito, aquele homem levantou o rosto em relação a mim, me cumprimentou. Por que todos do Éden me fazem sentir tão íntimos? – Eu... Queria te conhecer! Meu anjo da guarda disse que você era meu marido enquanto vivia na Terra.
            - Ah! Nossa! – Ele parecia impressionado com aquela informação. – O Gabriel me disse que eu era casado, mas que você não estava no Éden. Desculpe-me perguntar, mas qual é seu nome? Já me parece milhares de anos que estou aqui!
            Por mais estranha que a conversa soasse, eu o entendia completamente. Eu, de modo algum, reconheci meu marido e muito menos saberia seu nome se Manuela não me contasse. Além disso, mesmo tendo falecido recentemente, o tempo se dissipava, parecia longínquo e perto conjuntamente.
            - Me chamo Maria Julia. Ops! Quer dizer, quando éramos casados, meu nome era Jurissémia, mas você me chamava de Ju. Não gostava do meu nome. – Enquanto dizia isso, ele começou a gargalhar sozinho, não sabendo eu se era de mim ou de algo que eu disse. Será que achou engraçado meu nome?
            - Que besteira! – E riu, riu , riu. – Eu perguntei seu nome para o meu anjo da guarda, o Gabriel, e ele respondeu que não diria porque você não gostava de seu nome! E ainda disse que eu não gostava do meu! Estou rindo disso, pois é uma enorme bobeira. Qual nome Deus te deu aqui?
            - Maria Julia. Acho que prefiro. – E ri, ao lado dele, de nossa ingenuidade da Terra. Como somos bobos!

            Logo após esse encontro, fui me acomodando no Éden, fazendo muitos amigos, trabalhando com as crianças recém-nascidas perto das árvores frescas e acolhedoras. E, sempre, encontrava-me com Jeremias. Voamos juntos, nadamos, comíamos frutas deliciosas e o conheci mais do que todos os outros do Paraíso. Onde o Sol se punha, a beira do mar, beijávamos e tínhamos o melhor sexo, toques, olhares, suspiros. Manuela disse que é normal que se apaixonem, se envolvam. Quando vi, meu marido  a qual era casada há setenta anos na Terra era meu novo amor do Éden, contando histórias infindas e de nosso melhor momento da vida. Ali parecia muito mais uma coincidência do que por outro motivo, mas, tudo bem, eu vivia no Paraíso

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