Como (des)conhecer a Deus

[Uma representação da Trindade possível]

No movimento estudantil cristão em que faço parte, nós usamos um material que nos ajuda a captar como a pessoa que estamos evangelizando está em relação a fé dela chamado Conecta. Trata-se de um jogo de fotos a qual a pessoa escolhe de acordo com a forma que ela deseja responder as perguntas que fazemos. E nesse jogo existem três perguntas principais: Quem é Deus para você? O que você já viveu espiritualmente na sua vida? E o que você desejaria viver?
A partir disso, construímos pontes entre o que acreditamos e o que eles já possuem de fé a fim de haja um objetivo final – conhecer a Deus.

E conhecer a Deus é muito simples para quem deseja o Deus cristão. Não faltam materiais das mais diversas categorias de como o fazer. Um bem simples e direto é o das Quatro Leis Espirituais. Deus ama o ser humano, porém esse decide pecar. E, como o ser humano não consegue chegar a Deus, Jesus teve que vir salvar. Só que saber isso não é suficiente, tem que tomar uma decisão. A partir disso se constrói uma noção de que, tendo a pessoa feito essa decisão, conhecida como conversão, ela conheceu a Deus.

Só que a pessoa descobre que não é só isso. Ela sai daquele momento cheio de dúvidas do que fazer e se questionando se conhece a Deus suficientemente. E percebe que não. Aquele passo não foi suficiente. Você tem que orar todo dia, ler a Bíblia, frequentar uma igreja, suportar dúvidas, vencer pecados e estar cheio do Espírito Santo. Tendo feito isso, agora sim, você é um cristão maduro e nada vai te abalar. Ela, agora, tem um relacionamento pessoal, íntimo, com Deus.

Porém, em algum momento da caminhada, ela pode sentir que há algo errado, como uma falha. Um dia ela poderá não acordar se sentindo tão firme, sentindo-se distante, sem vigor espiritual e com dúvidas. E, quando alguém se encontra nessa situação, logo vem a policia da ortodoxia te instruir como entender tal situação: Deus é perfeito, nunca errado e sempre disposto a amar então se algo deu errado nesse relacionamento espiritual é porque você fez algo errado, a culpa é tua. E a ortodoxia é excelente para provar o quanto você está sempre errado.

Se Deus deixa pessoas falecerem de fome, a ortodoxia já conseguiu uma explicação e você duvida porque quer. Se você não tem sentido Ele nos seu dia-a-dia, a ortodoxia já diz logo que é porque você não está com “a vida espiritual em dia”. A dúvida é inimiga da fé e com o avanço da ciência (!), a fé se apossou desse conhecimento para estar sempre se provando. Hoje nossos pergaminhos de textos sagrados são analisados a partir de métodos científicos, além de pessoas que tentam provar textos bíblicos quanto a sua veracidade. Qualquer coisa sobre Deus pode ser explicado num site de apologética ou em um bom livro que, de fato, tem vários. E, como um método científico, aplicamos fórmulas comprovadas de crescimento espiritual que sempre devem dar os mesmos resultados: uma vida cheia do Espírito Santo. Assim, se algo deu errado, é porque você não está orando direito, não frequenta mais tanto a igreja, e não fez corretamente a fórmula do sucesso espiritual. Afinal, a Bíblia é um manual, lá está escrito tudo, mas tudo, nada falta, que você precisa para a vida espiritual. Fomos ensinados que nos foi dada a verdade sobre Deus e o manual fechado então nada pode ser acrescentado.

Não há motivo para ter nada tortuoso, difícil e muito menos plural quando o assunto é a fé cristã nesse sentido. Tudo nessa concepção é previsível, sem entrelinhas e, ops!, sem espaço para se ter fé. Deus, assim, não tem mistério, não pode te surpreender, Ele só pode o que você acha que Ele pode. O quão incoerente isso pode ser para uma religião que acredita num Deus onipotente? E num Deus que criou o universo, que é para além do tempo sem inicio nem fim?

Aqui eu retorno ao material evangelístico que utilizamos no movimento. Este é excelente, porque ouvimos o quanto Deus se manifesta de formas únicas, apresentando-se de diversas maneiras, fazendo cada um experimentarem coisas muito peculiares. Quem é Deus? Ora, que pergunta megalomaníaca! Tanto que quando perguntado por Moisés que Deus era esse, ele responde com EU SOU que pode ser traduzido como EU SOU O QUE SOU ou até mesmo com uma tradução impossível de ser algo que para sempre é (Ex. 3.14). E, quando nos é manifesto algo sobre quem Deus é, trata-se de material coletado por experiências espiritual com esse Deus que produziu um conhecimento sobre Ele.  

Abraão só foi conhecido por tamanha fé, e tantos outros que são explicitados no livro de Hebreus, porque se deixaram abertos para Deus lhe desvendar algo novo, para vivenciar o inexplicável, aquilo que outros não sugeriram. Nós temos palavras, conceitos, que servem de ilustração para aquilo que é manifesto: amor, libertação, cuidado, misericórdia etc. Estaria sendo incorreta em dizer que nada podemos saber de Deus, afinal a maior parte da população mundial é religiosa e tem contato com seu Deus constantemente, produzindo diariamente elaborações sobre aquilo que vivem. Porém, Deus não é isso. Deus não pode se capturar.  Haverá um momento que ele fugirá do seu controle (isso se você estiver disposto a ver).  A história de Jó mostra isso com muita clareza, pois Deus, devido a uma conversa com Satanás, decidiu mudar um padrão estabelecido – ao justo nada faltará – simplesmente por sua vontade. E, por Jó ter encarado isso apesar do caos emocional que teve, aprendeu uma nova faceta de Deus.

Porém, nos é insuportável fugir ao controle, perder o nosso poder sobre Deus. Nos é repulsivo porque fugiria a essa verdade tão entranhada em nós, produziria um desvio. E, sobre desvio, já falo um pouco sobre a heresia, o afastamento da igreja e a tristeza. O desvio é condenável. A polícia da ortodoxia não consegue aceitar e abaixar suas armas em cima daqueles que duvidam. Porém o desvio resiste porque Deus resiste a esse controle.

Entenda, não falo de desvio de Deus. Falo de um desvio de nossos pressupostos sobre Deus. Desvios de quando ouvimos a experiência espiritual de alguém e logo concluímos “Deus não pode ter se mostrado dessa forma, Ele não é isso.”. Quando, no processo evangelístico, verificamos com nossa lupa sacrossanta se o que a pessoa viveu se encaixa nos passos certos de como conhecer a Deus.  
Olhamos as perguntas desse material evangelístico a fim de enxugar o que ela vive a um padrão em vez de acrescentarmos a vida dela outras formas, que esta não conhece, que são possíveis de viver a fé. Uma troca verdadeira porque a chance dela ver algo sobre Deus que nós não estamos experimentando é grande. Não vou me adentrar se todas as formas de espiritualidades são lindas e saudáveis, porque não acredito nisso. Eu acredito, sim, no conceito de Agnosticismo soteriológico da Catherine Cornille, mas isso é tema de outro texto.

Por fim, eu quero me lembrar do exemplo de Jesus, uma pessoa que falava em parábolas, que se deixava afetar pelas pessoas que estava a volta dele. Alguém que chorou, se angustiou, perguntou a Deus. Alguém que não falava tudo da sua vida, não dava muitas explicações e só pedia para que o seguissem. Alguém que não se preocupou de doutrinar, em produzir uma ortodoxia, mas por se deixar levar pela vontade do Pai, ser um com esta e simplesmente vivê-la. Jesus não era muito de ficar dando explicações de quem Ele era. Então porque nos parece tão obvio quem é Jesus? E quem somos nós para entender tanto dEle, de Deus?  

Convido-os a entrar na dúvida, no caos e no desvio não como uma forma de afastar-se de Deus, mas como forma de se surpreender com a fé. De se deixar mergulhar naquilo que você não sabe e deixar-se (des)conhecer aquele Deus que antes nos era tão familiar. Descontrolar, resistir a ortodoxia, existir com caminhos novos, mesmo sem muito chão.

***

Observação: Rubem Alves em seu livro “Variações sobre a Vida e a Morte ou o Feitiço erótico-herético da teologia” (aliás, melhor nome de livro já criado) descreve um pouco como isso é problemático dando instruções para os teólogos – a qual eu me incluo – acerca dos nossos discursos totalizantes sobre Deus:

Qual a tentação do teólogo?
Qual seu desejo mais profundo?
Sua maior tentação: ver face a face, conhecer...


Seu desejo mais profundo: dizer Deus no seu discurso,enunciar coisas que o comum dos mortais não vê e não conhece... Falar a verdade sobre o sagrado, conhecer o Absoluto. Não foi por isso mesmo que ele ousou batizar sua fala de teologia? Logos, discurso, conhecimento, ciência do divino... (...) E de fato eu ousaria dizer que o mais alto desejo é justamente aquilo que é proibido: o teólogo não tem permissão para dizer a verdade. (...) Dizer a verdade sobre Deus não será um voo por demais alto para nós que mal conseguimos saltar? O conhecimento do Absoluto é traiçoeiro. No mito da queda, homem e mulher esperavam que o fruto do conhecimento lhe abrisse os olhos para coisas sublimes, mas o que eles viram foi apenas nudez. E é por isso que o teólogo, corpo de carne e osso como todos os demais, tem diante de si o interdito. Pode falar e dançar como quiser, desde que sua fala seja o poema do corpo, mas nunca a ciência do divino.

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