Herege, sim

[ Retalhos - Craig Thomspon]

O tema da heresia é um grande assombro da igreja cristã e este não é algo novo. Curiosamente, ele surge junto da criação da igreja de uma forma muito particular. Afinal, o judaísmo da Torah, percebia que havia aqueles que não se mantinham fiéis a Yahweh ou, posteriormente, a lei Mosaica. Porém, estes não eram vistos como hereges, mas sim como traidores do seu povo. Não era uma questão de heresia, mas de ter aqueles que eram piedosos a Yahweh, que não tinham outros deuses em lugar dele e aqueles que, no contato normal com as outras religiões, acabava tirando de seu foco o culto a Yahweh e a fidelidade que ele exigia. Era uma relação entre ser ou não fiel, a qual correspondia diretamente a prática da lei.

Com Jesus, a lei se cumpriu então não era um critério esse tipo de fidelidade. A prática da lei só separava aqueles que eram fariseus dos judeus comuns. O judeu comum não era herético, porém não possuia esse zelo. Apesar das diferenças com outros grupos judaicos, nem de longe isso se tornou importante na prática diária de Jesus. Nesse momento, nem o povo que não era do foco de trabalho de Jesus foi rejeitado, tratado como uma ameaça. Na verdade, a grande ameaça do Cristo eram os religiosos e os poderes, que na época eram o Sinédrio e Roma, porém podemos trazer essa representação para qualquer classe que usa-se de um poder para oprimir em contrapartida com um Deus/poder que faz de tudo para ser servo. Porém, segue como tema para outra postagem.

O que parece, dentro de uma leitura bem generalizada sobre o tema, é que a heresia surge após o evento pascal. Nesse momento, há uma grande indecisão sobre vários temas centrais daquela fé – quem é Jesus? Como é esse Deus? Maria é quem? Jesus era humano? Se Jesus era judeu, pode outras pessoas se tornarem cristãs? Aqui então surge aqueles que se consideram cristãos, mas tem algumas diferenças.

Se pensar que o livro mais antigo do Novo Testamento é I Tessalonicense e nessa época já havia conflito na igreja, percebe-se que o “pensar diferente” é tão primitivo quanto a própria igreja. E, sem dúvida, é um dos assuntos mais comentados em todo o material escrito fora da história de Jesus. Os falsos mestres são sempre alertados, exortados e corrigidos.

Isso não permaneceu diferente. Talvez tenha sido um dos costumes que mais vingou dentro da Igreja Cristã. Afinal, quantos Concílios foram precisos para formular uma doutrina? E o quanto a formulação de uma doutrina não diz respeito exatamente a exclusão de outras? E quanto, após o estabelecimento estatal da igreja, teve de perseguições? Cabe lembrar que a Inquisição não veio, prioritariamente, a cassar pessoas de fora dela, mas com o foco de purificar a Instituição das más doutrinas – afinal, morriam queimados como quem purifica. Provavelmente eu seria queimada na Inquisição não porque fosse uma sacerdotisa de outra religião, mas pelo fato de questionar livremente minha fé sendo parte dela. Ora, demorou muito para que, de fato, houvesse a morte sistemática de pessoas não cristãs e uma expansão infernal da Inquisição em seu propósito.

Além da Inquisição, o tema da heresia afetou tanto a fé cristã que a primeira divisão da Igreja, quanto ao lado ocidental e oriental, se deu pelo conceito altamente abstrato do Filioque. Apesar de sabermos hoje que estava bem longe de ser só isso, é bastante ridículo de se ver que a desculpa oficial da Igreja ter se dividido foi pelo fato de um deles acreditava que o Espírito Santo provinha do Filho e do Pai, enquanto outro propunha que só vinha do Pai. Este tipo de desculpa rompeu a Igreja em Igreja Católica e Igreja Ortodoxa.

Há, ainda, muitas outras divisões da Igreja que são surreais. Não só divisões surreais, quanto a decorrência de guerras por diferenças teológicas – obviamente, regadas por política.

Aqui cabe colocar também em foco a Reforma Protestante que é o pico de um iceberg de tentativas de mudanças fracassadas e repreendidas dentro do berço católico. Nas histórias protestantes se ouve muito acerca de como a Igreja católica se perdeu e, na Reforma Protestante, houve um retorno legítimo a proposta essencial da Bíblia. Ora, isso é de um protestantecentrismo (se é que existe essa palavra) estúpido. A Reforma nasceu de uma heterodoxia, de uma forma herética de ser católica que em vez de ter sido encorporada – como ocorreu com os Franciscanos – foi levada a conflitos e a excomungação. A proposta Luterana de se entender igreja é absolutamente distante de um cristianismo primitivo. É anacrônico e incorreto tal pensamento.

Pulando alguns – muitos – séculos, temos a efervescência do que chamamos de movimento evangelical, no século XIX. Neste movimento, alguns pontos foram assinados como a inerrancia verbal, divindade de Cristo, nascimento virginal, expiação vicatória e ressurreição corporal. Eles se consideravam aqueles que se possuíam os fundamentos imutáveis – os fundamentalistas. E destes se enraizou um movimento que cresce acerca da Bíblia como única regra de fé e de prática. Estes se opunham ao método histórico-crítico que crescia na Europa, que produzia uma teologia liberal.

Ora, creio que todo esse histórico chegou há um tempo que você se identifica. O protestantismo brasileiro se torna um número considerável há aproximadamente trinta anos, então trata-se de um movimento novo.Apesar das mudanças constantes e plurais de um protestantismo que não é único, há algo tentador que cresce, seduz e carrega corações em um mundo pós-moderno líquido e fluido: a ortodoxia. Quantos sites podemos mapear acerca de um retorno a Reforma Protestante (como essência da fé. A qual, novamente, trata-se de anacronismo), um grande interesse no protestantismo tradicional (cresce-se batistas tradicionais), uma gigantesca conversão ao predestinacionismo, entre outros.

Todos esses surgem de uma crise do protestantismo brasileiro que, influenciado pelo mercado americano e o pentecostalismo que lá começava se instaurar, vem um grupo de empresários/pastores que transformam igrejas em seus negócios. Tal busca pela ortodoxia era uma resposta a um crescimento evangélico que se caracterizava em dizer “não faço parte dessa manobra, não estou pelo mercado.”. Porém, não é necessário apontar o quanto tal incessável busca pela ortodoxia se tornou mais danosa ainda.

Primeiramente porque é elitista. Os pentecostais são classificados pelo IBGE como, em sua maioria, de uma classe pobre da população a qual para os protestantes ortodoxos são taxados como incultos, desprezados e sem possibilidade de produzir uma teologia saudável. Isso é tão enganado que merece uma postagem só para isso.
O meu ponto que finalmente quero chegar é que tal produção de fé é tão herética, heterodoxa, fora do padrão de “igreja primitiva” que tanto se apregoa. Nenhuma cristão pobre de Antioquia sabia o que significaria “única regra de fé e prática”, o que é ser “predestinado”, quem é Augusto Nicodemus. E o fato de colocar uma categoria como essencialmente correto, natural, cria a exclusão direta de todas as outras. Nessa exclusão ressurge os hereges, ainda mais fortes, que são ameaçados corriqueiramente pelos ortodoxos.
Como eu, tenho medo de colocar minha opinião no facebook. Como eu, tive medo de conhecer a teologia liberal quando fiz faculdade. Quando a conheci, escondi minha Bíblia porque achei que eu teria que fazer uma escolha de vida ou morte – ser cristão ao não. Por fim, descobri que a escolha não era essa. A escolha era: ser ortodoxo ou heterodoxo. Ser Reformado ou ser Herege. E, com muito orgulho, escolhi a heresia.


Minha vida espiritual se tornou mais fácil? Não. Não me tornei mais aceita pelo mundo, nem pelos meus irmãos. Não tive vantagens nesse aspecto. Pelo contrário, desvendei um terceiro caminho que não está nem entre os judeus nem os gentios. Não quero deixar de ser cristã, mas também não quero acreditar na mesma coisa que a grande maioria. Era o meu caminho de espiritualidade com Deus, com Jesus, com o mistério pascal. E estou satisfeita de ser herege, sim. 

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