Brincar e sacralizar


[Gostaria de contar, bastante pessoalmente, uma das experiências místicas/espirituais que tive recentemente.]

Ah, hoje não deu. Não consegui resolver o que eu precisava na pós-graduação. Estou cansada, cheia do que resolver e... nada. Sinto-me no deserto, onde não ando nem para frente ou para trás. É tudo um grande silêncio, com faltas de respostas, e um emaranhados de perguntas não resolvidas.

E, dentro dessas perguntas, aonde está Deus? Aquele Deus que ficava tão de pertinho, que brincava comigo? Sinto tanta falta dele. É uma saudade do paraíso, das tardes do jardim que me destroem. Deve ser isso que as pessoas chamam de estado de pecado: a angústia de não ter Deus ali. Ou de não o sentir mais...

Nessa angústia encontrei uma igreja. E, sabe, eu não gosto de igreja, mas algo havia lá que eu gostava: do silêncio, da solidão. Não demais, mais um pouco de silêncio é delicioso. E do sagrado. O sagrado me move.

Era a Igreja de São Bento, que esteve em obras durante todo o período em que eu estive em aula. Não conseguia acessar a igreja toda antigamente, eu ia direto a uma capelinha interna que nunca foi restaurada - a sala do sagrado coração de Jesus. Ali tive boas experiências durante a pós, a qual eu e meu amigo ficávamos lá, e Deus gostava daquele lugar para conversar com a gente. E que saudade daqueles papos!

Ao entrar na igreja, aquele choque. Barroca, cheia de ouro, de imagens, símbolos, pinturas e referências daquele sagrado que gosto tanto. Restauraram as figuras do sagrado e isso já me inspirava em imaginar como seria toda aquela plenitude de Deus. Porém, eu sentia saudade mesmo era do cantinho onde ficava o coração de Jesus. Fui até lá.

E lá, encontro a capelinha fechada. Uma pequena porta me fechava. Um devoto chegava e, sentando-se perto da porta, orou ali mesmo, ajoelhado para a imagem do Cordeiro, feito de ouro, com um cetro e, em sua bandeira, o coração santo de Jesus. Eu o observei, analisei sua contrição e, quando este se foi, fiz o mesmo. Ajoelhei e orei ali, frente ao cordeiro. Só que o que eu queria mesmo era brincar com o Cordeiro e estávamos numa distancia de seis fileiras de bancos. Quem brinca assim?

Vi que a porta tinha uma tranca. Uma tranca muito simples. Tranca esta que não tem direito de separar um devoto de sua capela. Abri porque queria ficar mais perto, olhando para todos os lados, vendo se algum padre me negaria esse lugar.

Entrando naquele espaço, o acomodei por inteiro em minha vista: mais pardes de outros, desenhos de arca, Bíblias, santos anjos que carregavam em suas mãos um dos símbolos mais marcantes do catolicismo: a luz vermelha. Para quem não conhece, a luz vermelha é acessa quando, após celebrada a ceia do Senhor em que sobrou Hóstia. Esse elemento, que durante o sacramento, se torna verdadeiramente o corpo de Cristo, precisa ser guardado em lugares santos que normalmente são capelas. E, para avisar que o corpo de Cristo está ali, de fato e que a presença dele se expande naquele lugar, se acende a luz vermelha, que corresponde ao sacrifício.

Jesus estava ali. E eu imoralmente perto.

Com Deus tão pertinho, quis o adorar, ver quem ele era, o que ele poderia me revelar, me ensinar, me espantar. Deitei-me no chão e, do chão, os olhos o cordeiro iam até os meus. Esses olhos, de animal, ficavam no alto da capela, soberanos e poderosos, como quem há de julgar a vida e a morte. Eu apenas queria o olhar com carinho, abrir os braços no chão entre os bancos, sentir as lágrimas de quem orou, penetrar no espaço santo. E, dali, ter um pouco de Deus. Nesse pouco que eu sentia, ouvi um desafio:

Vem.

Ora, já estava deitada no chão, deliciando com o sagrado, como eu iria ultrapassar isso? Havia, sim, uma corda vermelha, que me limitava de tocar no Cordeiro, tocar na luz vermelha santa e no altar. Eu sou uma devota, tão simples, que estava ali perto dos bancos abusando bastante de poder deitar-me no chão de braços abertos tocando no sagrado. Eu iria ultrapassar? Não vou mentir, gosto de perder os limites, me mostrarem coisas misteriosas e grandes que eu não sei. Eu quero. Quero muito. Mas eu devo, Cordeiro?

Vem. 

E, como brinca com a corda da normalidade, do pudor, da sacralidade, eu pulei, dancei, esqueci. Passei dos limites e fui direto tocar em tudo que era santo. Como seria tocar na presença de Jesus, como seria estar ao lado de um anjo? Como seria ter seu corpo colado com o altar e, antes de tudo, como seria brincar de pique esconde com Deus? Não aquele pique esconde cruel que nada tem de divertido quando Deus se afasta, mas de saúde, aonde eu vejo e desvejo Deus e, mesmo sem seus olhos animalescos com o cetro divino, eu sei - sei muito - que ele está ali na brincadeira.Foi o que fiz, toquei em tudo, brinquei. Eu ri com Deus e ele comigo.
Por fim, cansada daquela diversão toda, me vi sobre o altar, como sacrifício. Não um sacrifício de dor, mas de quem deseja se dar. Eu quero, quero me dar para Deus. Ele é tão doce comigo, Ele sabe o que ninguém mais sabe, Ele ama como ninguém mais ama e, mais do que tudo isso, Ele é o que Ele é. Alguém de sagrado coração.

Abracei o altar, como quem se entrega de presente e deixei o tempo passar. Só eu e Deus, num silêncio não mais perturbador, mas de como dois amantes que só querem se admirar. Só admirar...

Pode ir, minha filha. Você não precisa ficar mais aqui comigo. 

Senti que já era hora de terminar a brincadeira, deixar as coisas de menina. E, como feito para acontecer, virei as costas em direção aonde vim: afastei do pique esconde, pulei a corda para perto dos bancos. Ao coloca meus pés ao lado dos bancos, vejo um monge gritando ao fundo: "Menina, o que está fazendo ai?"

E eu, ambígua devido ao meu superego consolidado, sai devagar, fechando a porta da capelinha do sagrado coração de Jesus. O monge continuava a me olhar até que, quando me aproximava do portão principal, um desejo enorme surgiu em meu coração. Afinal, que criança termina de brincar e sai andando? Criança termina de brincar e corre! E eu corri, corri, corri da igreja, corri. Corri como quem rouba algo e, sim, eu roubei. Roubei o sagrado, roubei a posse de Deus que só podia para quem passava da cordinha. E fugi do monge como quem leva o sagrado para si. E levei mesmo Deus comigo.

Levei o sagrado para mim.

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