Mea Culpa (sobre saúde mental e fé - Parte II)


A imagem corresponde a Rafaela María Porras Y Ailon, mulher santificada pela igreja Católica e vivida de uma história que muitas conhecem:

"No auge de sua via, Rafaela foi destituida da direção da ordem religiosa que ela fundou e proibida de exercer qualquer cargo. Em vez de insurgir-se contra a injustiça e destruir a reputação da ordem, ela aceitou o exílio em um pequeno convento em roma. Rumores de que ela sofria de problemas mentais perseguiram Rafaela em seu novo lar e as irmãs do convento não lhe deram atenção. Ela suportou trinta anos desse "purgatório de inatividade" e procurou ser útil varrendo o chão." (Gallick em Livro das Santas, p.22)
Mea culpa! Rafaela sofreu por toda sua vida a culpa de possuir um problema psicológico. Passou trinta anos vivendo a margem da ordem que fundou e sua paciência santa é motivo para a canonização desta mulher. Sua entrega, sabendo de suas limitações, tem sido louvado como exemplo as mulheres que possuem doenças mentais.

Porém, isso não é verdade. Rafaela recebeu um golpe de poder de sua irmã Dolores e mandava cartas para as mulheres de sua ordem (Consagração das escravas do Sagrado Coração de Jesus). Pedia continuamente a sua irmã para que a perdoasse e trouxesse de volta. Dolores foi exonerada e nunca mais Rafaela voltou para a ordem que criou.

Perceba: a forma narrativa que se conta sobre nossa saúde mental é sempre de modo a nos culpar, como se fosse um erro. Algo que devemos pedir perdão, que não é conforme o caminho de Deus, ruim em si. Nos é ensinado a viver com essa culpa, com essa ideia de que, talvez sejamos de fato pessoas que prejudicam as outras.

Não conheço um homem que não tenha dito que sua ex namorada é louca e, ao relatar, encontramos basicamente duas tônicas: um exagero a fim de se colocar como alguém perfeito, sem defeitos no relacionamento e outro que é de fato ter uma namorada com a saúde mental prejudicada e que não era corretamente tratada. Isso é, que se a pessoa fosse um bom namorado, teria noção de que aquilo era doença e não deveria ser um demérito.

Temos experiências similares na década de 1980 e que estão retornando com os casos das DSTs. As pessoas sentem-se culpadas pelas doenças que possuem, sendo que a responsabilidade de precaução é igualmente dos dois. Mulheres casadas são rechaçadas pelos seus companheiros que jamais fizeram testes das doenças e que reclamam das camisinhas. De modo similar, homens que possuem também doenças mentais - como síndrome do pânico, TAG, TOC, etc. - ainda chamam suas ex namoradas de loucas.

Seria assustador dizer que terminou um namoro porque a mulher era diabética, afinal isso é desrespeitoso. Mas, de modo similar, achamos razoável terminar relacionamentos porque o companheiro teve problemas de saúde mental. Achamos razoável desprezar, diminuir e culpabilizar por aquilo que a pessoa está passando.

Não digo isso sem lembrar de que conviver com uma pessoa que possui a saúde mental comprometida é dificil. Dependendo do espectro, do quadro, da nosologia, é algo que exige muito amor no cuidado, porém a humanidade se mantém. A humanidade se mantém tanto que essa é a bandeira da luta antimanicomial: o fato de estar doente ou ter um diagnóstico não deve ser motivo para excluir da vida social. Não é uma escolha nem um erro.

Beata Catarina, considerada pela Igreja Católica uma mulher segundo o coração de Deus, desejou morrer, não se levantava e nunca se recuperou. Esta era apaixonada por Jesus e conta sua história que pediu para ter o coração dEle e O mesmo a emprestou por 50 dias. Contudo, sua doença é contada como um espinho na carne, uma tentação maligna para a afastar desse caminho. E o fato de nunca ter sido curada talvez tenha sido uma culpa permanente em sua vida.

A religião, como um componente social, reforça esse pensamento de que a depressão, a ansiedade, o desejo de morrer são presenças malignas. Algo para se sentir culpada, como um fardo, um peso que se dará a sua família e pessoas próximas de propósito, sendo que está longe de ser assim. Porém, a culpa já possui espaço demais dentro da religião e o Cristo diz que seu julgo é suave e o fardo é leve. Veio para cumprir a profecia de Isaías que diz que o Messias é libertador. Deus, antes de tudo, é um Deus que é maior em misericórdia e que fez questão de estar com as pessoas mais fragilizadas, como uma crianças de Nazaré. Então, em vez de ser reforço para a culpa, a religião pode e deve ser potência de mudança de paradigma, de aceitação e humanização destas pessoas que sofrem.

O mesmo ocorre em outras religiosidades que trabalham com reencarnação, karma e outras crenças que, diversas vezes, trazem culpa a seus membros por uma fragilidade psicológica. Não faça esse desserviço para seus membros! O ser humano é psico-social e, quando religioso, espiritual. Se uma das partes reforçar a culpa, pior é o tratamento.

Então, liberdade!
Ide em paz. Não há o que desculpar.

 

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