Distantes da sociedade, distantes da verdade.




“Aqui é uma igreja mesmo?” – O pintor me perguntou enquanto eu sentava no chão da igreja encapando a sala para não sujar o piso novo. O homem estava colorindo as paredes de branco e rapidamente o assunto chegou no fato de sermos evangélicos. Sim, somos uma igreja, já estamos até nos reunindo nesse espaço, respondi.

“Ah, o pastor Filipe disse que aqui seria um espaço de co-alguma coisa” – é um espaço de trabalho coletivo. Terá muitas mesas, cada um trabalhando no seu espaço. Nós queremos que o espaço da igreja seja útil para o bairro para além do culto.

“Mas vocês são igreja mesmo? Vocês sobem no monte?” – Olha... Não temos esse costume, mas entendemos que pode ser uma experiência espiritual importantíssima.

“Vocês têm que subir o monte. Na última reunião de oração teve muitas revelações, o fogo desceu naquele lugar, a gente conseguia ver. Vocês acreditam em revelação?” – Então, se estas tiverem de acordo com a bíblia, sim. Pode ser que numa reunião de oração uma pessoa sinta uma palavra vinda de Deus. 

“Mas vocês têm reunião de oração???” – Ele fez a pergunta bastante impressionado. É claro, respondi. Como ser cristão sem orar?

“E essa tatuagem aí? Você fez quando estava desviada?”; “E vocês aí da igreja, podem ir para show que não seja gospel?”; “vocês se guardam para o casamento?”; “Conhece uma varoa que pode me apresentar?”; “Jesus está voltando, né, estamos no fim dos tempos.”

Essa conversa me deu um estalo sério de que nossa geração de cristãos progressistas – incluindo eu – estamos sendo muito arrogantes em achar que estas questões mais básicas já são coisas bobas e não importantes. Nós vemos esses temas como debates passados, respostas fechadas na vida e que precisamos avançar. Precisamos discutir aborto, discutir política de legalização, inserção de homossexuais nas igrejas, discutir prostituição, dialogar com religiões de matriz africanas, construir um lugar libertário para as mulheres, ser denúncia da violência do estado, criar uma mística “popular”. Precisamos de tudo isso, de verdade. Porém, estamos fazendo uma escolha perigosa: a de achar que certas lutas são mais relevantes que outras porque eu mesma já superei aquele tema. Já que sexo antes do casamento não é uma questão para mim, vou deixar esse problema de lado e esquecer que majoritariamente as igrejas estão massacrando a sexualidade de milhões de mulheres, as deixando doentes, amedrontadas e silenciadas.

Toda vez que me encontro com evangélicas que estão se aproximando do feminismo, eu vejo o quanto esses discursos progressistas não fazem eco nenhum nas igrejas. Nenhum. Pode fazer eco na sociedade fora das igrejas, mas aos nossos irmãos, nenhum. Estas estão nem ai com o debate de feminismo radical e feminismo liberal. Não chegam nem a pensar na possibilidade de falar sobre aborto nas igrejas porque, né, mulheres nem pode falar.

Particularmente eu ficava pensando que isso atrapalhava, que isso impedia que a gente fosse discutir coisas mais complexas e realmente revolucionárias para a fé. Achava cada vez menos que estes debates básicos não eram para mim, porque minha base teológica já avançou. Que orgulho besta habita dentro de mim! Quem sou eu para decidir o que é importante para ser debatido?

Então, durante a conversa com este homem, eu senti um sopro do Espírito Santo que me dizia: “se este homem não for livre, você não está livre.”. O Espírito de Deus estava parafraseado a frase de Audre Lorde e expandindo para um outro nível de compreensão: “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.”. Nível este de que eu tinha que baixar minha bola, mas baixar muito, e dizer para mim mesma que responder aquele homem era o maior avanço revolucionário que eu podia estar fazendo na vida de alguém. E não só responder, mas ouvir. Muito mais do que eu ir a uma passeata. Ouvir aquele homem era a coisa mais cristã que eu tinha que fazer.

Nesse sentido, a teologia da libertação tem um ponto que não podemos deixar para trás de jeito nenhum. A escolha preferencial de Deus é pelos empobrecidos, sim. Os pequeninos, as perguntas mais simplórias, são nesses lugares que Deus está.

É claro que isso não isenta de todas as camadas de críticas que a teologia da libertação recebeu. O fato de não ver a diferença de raça, gênero e sexualidade, além de criar uma ideia de pobre utópica, perfeita, que não corresponde com a realidade são questões amplamente debatidas. Isso ao lado da crítica a metodologia marxista.

Porém, não dá para negar que a teologia da libertação está certa e sempre quando nos afastamos dela, perdemos algo essencial de Deus. Jesus se preocupou de um Reino para o povo, de uma teologia feita no meio do povo, de curar pessoas, falar com pessoas. Jesus morreu como bandido no meio do povo e ressuscitou para se reencontrar com seus amigos. Até na ascensão estava em meio das pessoas. A base é sempre o ponto de partida da teologia. Pedro Casaldáliga acertou perfeitamente quando diz que no ventre de Maria, Deus se fez homem e na oficina de José, Deus se fez classe. De todas as opressões e camadas de empobrecimento, numa sociedade capitalista a classe é sempre a principal. E é nas classes menos favorecidas que encontramos essas perguntas que não queremos mais responder.
É no corpo desse homem negro, nordestino, morador de Caxias, pintor, evangélico que está o motivo pelo qual Jesus veio a Terra. Não por mim, mas por ele.

Frei Beto, recentemente em um evento sobre direitos humanos e cristianismo, disse que a esquerda só vai se unir no trabalho de base. Concordo profundamente. Enquanto estivermos pensando em grandes questões políticas, grandes debates se Deus é mulher ou é sem gênero, temos gente acreditando piamente que sequer é possível ter a intimidade de chamar Deus de Pai.

São lutas que andam juntas, mas uma é mais importante que a outra. E o mais importante é, sem dúvida, estar com os mais simples. É ali que está a verdade do Evangelho. É no cuidado dos que precisam de um alimento, de uma visita, de um apoio que está a salvação. É na conversa com uma mulher marginalizada. É no monte com o povão dividindo o lanche. É falando do dia-a-dia. Jesus não fez cristologia, estudo de trindade, estudo de exegese profunda. Jesus fez uma vida ao lado do povo que consequentemente deu na teologia que temos.

Voltemos a base.



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