Religião e Infância parte II - Sua igreja é pedófila



(Exposição "As crianças intocáveis" de Erik Ravelo) 

Em 2009 foi bastante divulgada a reportagem da menina de 9 anos que estava grávida de gêmeos. Pobre, moradora de Alagoinha, interior de Pernambuco, era estuprada há anos pelo padrasto assim como sua irmã, de 14 anos, deficiente física. O caso fez bastante sucesso porque se enquadrava num caso que a justiça brasileira teria o direito de conceder o aborto seguro: risco de vida da gestante e estupro. E, de fato, ela o fez com aceitação da mãe que estava bastante abalada com o caso por não saber dos abusos cometidos pelo companheiro.

Porém, não bastasse o caso ser difícil por si só, o Arcebispo de Pernambuco – Dom José Cardoso Sobrinho - logo após a realização do aborto comunicou diretamente a imprensa que todos os adultos envolvidos no aborto e a menina estavam excomungados da Igreja Católica. O argumento do Arcebispo para essa condenação tão rápida foi que “isso aconteceria a qualquer um que realizasse aborto” e a repercussão do caso se ampliou dentro desse debate da legalização.

Repare, o padrasto não foi excomungado. E, repare também, a imprensa quase não entrou no tema da pedofilia. No meio de outros temas importantes, o abuso sexual infantil foi completamente abafado do caso. Contudo, é evidente, gritante, óbvio, que se trata de um caso de pedofilia.

E por que então não nos salta aos olhos a pedofilia
? Por alguns motivos muito simples. Essa história que sempre ouvimos de que pedofilia é abominável e que quem pratica são monstros é balela. É claro que existem situações psicopatológicas, mas quando jogamos todos os casos em cima de pessoas doentes, a gente não se responsabiliza. O pedófilo é o outro e nunca nós mesmos. E o outro, distante, não-eu, é sempre mais fácil de condenar.

Assim, quando vemos um próximo envolvido com pedofilia logo desconfiamos das fontes ou silenciamos o caso. Afinal, quantos casos de pedofilia você ouve no jornal? Muito menos do que existem. E se, de fato, tivéssemos tanto ódio dos pedófilos não aconteceria desse modo.

Alguns dados para pensarmos: o Brasil é o país com mais pedófilos do mundo, entrando em 70% dos casos mundiais. A palavra mais pesquisada na pornografia nacional é “novinha”. Mas, também, o Brasil é um dos países mais religiosos do mundo. 64.6% de católicos, 22.2% de evangélicos, incluindo outras religiões chega mais de 92%. Fica quase evidente que os pedófilos, como no exemplo acima, são religiosos.

E antes que nosso impulso logo diga “ah, mas ele era católico. Católicos tem uma questão com a pedofilia. Lá tem padres pedófilos, etc.”: não são eles que tem esse problema. Toda nossa sociedade tem problema estrutural com a pedofilia.

Um exemplo bem simples disso: a depilação feminina. Todas as ginecologistas concordam que os pelos íntimos servem de proteção da região das vulvas e que, se corretamente limpos, não tem nenhum problema de higiene. Porém, nós mulheres aprendemos que a forma correta de se manter é sem pelos. E quem é que não tem pelos na parte íntima? Isso mesmo, crianças.

Fora esse exemplo, podemos pincelar várias expressões pedófilas que estão na nossa cultura: chamar namorado de papai e a namorada de bebê, casamento infantil, maquiagem infantil, vestimenta hipersexualizada para crianças, o uso do termo “novinha” e,o mais polêmico, namoro de pessoas de idades muito discrepantes. A maioria de nós teve contato à pornografia pela primeira vez na infância.  Lembrando que isso tudo está enraizado de uma forma muito profunda culturalmente. Nós viemos de uma estrutura ocidental a qual as crianças oscilam entre serem pessoas esquecidas na sociedade e pessoas usadas pelos adultos. O trabalho infantil resiste até hoje por causa disso, assim como a desvalorização da escola, da brincadeira, da fala das crianças. Elas só servem em nosso favor.

Tudo isso existe porque temos, estruturalmente, algo que quase nunca comentamos que é o adultocentrismo, que cria por conseqüência um etarismo. Isso é, nós construímos a sociedade a partir do adulto, a qual estes são os únicos a terem direito de decisão, de governar, de circular pelo espaço público etc. O objetivo da criança e do adolescente deve ser se tornar adulto e, quando se torna idoso, perde todo seu valor social por não ser mais produtivo. Isso cria a discriminação contra crianças e idosos advinda de adultos. Logo, quando há uma decisão do governo que coloca o limite para pedofilia nos 14 anos – que já é uma idade bem baixa, pois o nosso cérebro fecha a parte pré-frontal que dá plena capacidade cognitiva aos 21 anos – isso é uma proteção para que não ocorra dentro dos relacionamentos essa discrepância geracional, de poder e de linguagem.

Um trabalho muito interessante acerca desse tema foi realizado por Sándor Ferenczi, um psicanalista húngaro, a qual ele teorizou o que foi chamado de “confusão de línguas”. E o que seria essa confusão? Esta se dá quando um adulto – que possui sua linguagem sexual a partir da genital – olha para uma criança achando que esta expressa sua sexualidade da mesma forma que ele. Porém, crianças passam por um processo de desenvolvimento sexual e estas se expressam por uma linguagem própria que o autor chama de Ternura, do Lúdico. Então uma criança toca seus órgãos sexuais como uma brincadeira, muito diferente de um adulto. Ela se mostra nua como um jogo e não por erotismo. E quando há uma mistura entre essas duas linguagens – confundindo a criança – é que ocorre a confusão de línguas.

Falei tudo isso para chegarmos, finalmente, ao tema da igreja. Ora, a igreja não é uma entidade ahistórica, não influenciada por toda essa construção social. Pelo contrário, somos reforçadores da cultura como qualquer outra instituição. Não são só os nossos irmãos católicos que tem problema com o tema. Nós também, evangélicos. No momento em que, no país com maior número de pedófilos do mundo, sequer se comenta sobre esse tema nós estamos omitindo ajuda.

Quando colocamos as crianças em espaços separados com o objetivo de “parar de incomodar”, estamos reforçando todo esse etarismo que não vem de Jesus. Afinal, foi este que pediu para aproximar os pequeninos/criançinhas. Quando não vemos nas crianças uma oportunidade para aprender mais de Deus, dar espaço para elas falarem e se expressarem reforçamos de novo esse lugar silenciado da infância. Se nós damos aval a nossos adolescentes se relacionarem com pessoas mais velhas só para “poderem casar logo”, isso é pedofilia. E, ainda, se não acreditamos quando um caso ocorre na nossa igreja, especialmente duvidando da criança porque “mente muito”, estamos sendo mais do mesmo na nossa sociedade.

Tantas outras situações podem acontecer. Tantas eu já ouvi amigos relatar. Tantas eu já vivi.

É muito difícil, muito contra-intuitivo. E é muito pior para quem viveu isso na pele, quanta culpa, quanta insegurança. Pode ser que a igreja seja o único lugar que a criança se sinta segura. Quem trabalha nessa área, com certeza já ouviu relatos de violências diversas. E se, infelizmente, adultos só ouvem adultos, então precisamos falar.

Fale para sua igreja do Disque 100 para denuncias, dê espaço para as crianças, revolucione como Jesus fez porque delas é o Reino dos céus.

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