Saúde Mental e Mulheres Evangélicas




(Texto da Live realizada pela EIG)

Gostaria de apresentar, de uma forma muito simples, a perspectiva da psicologia, temos psiquiatras e pessoas que se importam com a saúde mental como terapeutas etc. Mas o psicólogo tem um código de ética, uma história, uma ciência e profissão.

Nós, acima de um sentimento de estar bem ou de alguma energia, temos 5 anos de estudo que nos dá algum preparo para, mesmo estando mal, a gente consegue ouvir um paciente dizendo que está mal ou quer morrer. O pastor, um amigo ou alguém podem e devem contribuir para a saúde mental das pessoas ao seu redor, mas tem suas diferenças devido a peculiaridade da profissão.

Mesmo nos distanciando, tentando ter uma relação imparcial, a gente tem nossos lugares que são pontos de partida para o pensamento. Sou uma mulher branca, evangélica, de classe média, do sudeste, não casada, sem filhos. Até mesmo o fato de ser uma pessoa que lido com problemas de saúde mental tem uma implicação.

O que é saúde mental?

Então, o que podemos entender como saúde mental? A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Isso é, saúde não é falta de doença. Uma pessoa que não tem depressão pode ter uma péssima saúde mental e uma pessoa com depressão pode viver bem, cuidada, com uma excelente rede de apoio. Então as pessoas vivem em um espectro, de muitos fatores, que fazem a pessoa não estar saudável ou não.

Temos questões biológicas que podem ser afetadas, tipo alguns tipos de depressão que são por falta de serotonina. (demônio da meia noite), mas dificilmente uma pessoa que tem falta de serotonina somente. Ela tem normalmente falta de acesso a medicamentos, a psicoterapia, a uma rede de apoio, teve alguma violência muito pesada na vida que ativa essa fragilidade. É como um diabetes. Se você tem acesso a saúde, pessoas que entendem que você precisa de injeção, você consegue viver com uma certa tranquilidade.

Isso vai na contramão do senso comum que diz que depressão é doença de rico. São mais de 2 milhões de casos por ano só no Brasil, lembrando que é uma doença muito subnotificada. Então, a gente percebe que as questões de saúde são implicadas por fatores sociais – como raça e classe - e dos sistemas que fazem parte da vida da pessoa. Sistema-casa, sistema-trabalho, sistema-relacionamentos e também sistema-religião, dependendo da pessoa.

Como as mulheres são afetadas?

Vou começar pelo sistema-casa ou sistema-família porque ele é um lugar que o gênero afeta muito na saúde mental. A família é ainda o maior lugar onde a mulher sofre violência. As mulheres brancas tem uma jornada dupla de trabalho e as mulheres negras, uma jornada tripla. Muitas famílias no Brasil são apenas as mães e os filhos, sendo elas responsáveis por estes. As mulheres são culpadas por manter o casamento com maridos infiéis e são as responsáveis por qualquer sofrimento que a família sofre. A mulher carrega sobre si o sofrimento mental do marido e dos filhos muitas vezes. Então, ao mesmo tempo que a família pode ser um lugar de acolhimento, sabemos que é um dos lugares de maior adoecimentos de mulheres.  Isso só é um exemplo de como a saúde mental é um sistema. Se o ambiente não tem equilíbrio físico, mental e social, mesmo que não seja uma relação abusiva, não é saudável.

Os únicos lugares a qual as mulheres teriam possibilidade de se expressar é dentro do espaço doméstico, mesmo assim sendo limitado pelo casamento e a maternidade (Laquer, 2001 apud Zanello, 2018). E assim foi constituído uma ideia de mulher única, modelo, ideal, sendo que, entretanto, a categoria mulheres é plural, com diferentes referências e potencialidades como a mulher negra, lésbica, indígenas, com deficiência etc. (Pedro, 2011 apud Zanello, 2018)

O mesmo ocorre no trabalho, onde há assedio sexual, menores salários, inferiores condições de trabalho. O mesmo com as amizades, a qual as mulheres são ensinadas a terem inveja e rivalidade uma com as outras e nunca confiar nos homens. E, a mesmíssima coisa acontece na igreja. Nesse meio, o sistema religioso não se isola, pelo contrário, está em contato com outros sistemas culturais que refletem essa hierarquia. Então, há uma introjeção de estereótipos de Gênero, como a submissão, o estupro e a violência doméstica, sendo esses dois últimos frutos da marginalização da mulher dentro do espaço de fé.

Se não há equilíbrio físico, mental e social, mesmo não sendo uma igreja que explora a pessoa no dízimo, ela pode provocar violência contra essa mulher. E, assim, a gente entende que é claro que existem questões internas, particulares, mas eu creio – e não todo psicólogo crê nisso – que o psicológico é subjulgado ao social na maioria das vezes. E, lembrando, mesmo quando é genético, biológico, o fato de não termos cuidado e acessibilidade, como vemos com nossos conhecidos que são autista, faz com que essas condições se tornem cada vez mais duras.

Se a gente for honesto, olhando para isso tudo, a primeira coisa que devemos perguntar é: de fato, é possível ser saudável? É possível termos saúde mental na sociedade machista, racista e classista que vivemos?

E vem um outro ponto que foi debatido por um teórico importante chamado Canguilhem que é a problematização do que chamamos Normal e Patológico. O que a sociedade espera que seja normal para a gente? O normal que nossa sociedade exige é uma sociedade que quero chegar ou, mais ainda, consigo chegar?

Vemos no início da psicanálise que a primeira doença mental era histeria, de útero, uma doença de mulheres. Muitas neuroses durante anos foram vistas como doenças de mulher, o que foi uma transformação do que era na idade média a ideia de que mulheres iriam ser bruxas. A mulher já é vista socialmente como um ser fragilizado, naturalmente tendencioso a sofrer, enquanto os homens se matam mais que as mulheres.

Esse desequilíbrio foi-se estabelecendo, primeiro, pelo moralismo religioso, vindo no sec XVIII/XIX e depois veio a se consolidar dentro do discurso médico, num moralismo cientifico. (Del priori, 2011). Não só estes, mas também a publicidade e o jornalismo se encontram para observar e controlar. A medicina e as áreas de saúde, como a psicologia, se tornaram cada vez mais uma ciência da fiscalização e da repressão moral (Del priori, 2011) e sempre focada nas mulheres como percebemos na autora que diz que “para isso, era preciso manter-se bela, saudável e praticar a arte de agradar, de encantar, mantendo-se sempre próximas ao ideal da amizade amorosa” (Del priori, 2011, 254). Mulheres são sempre seres para o outro.

A mulher, por mais que se esforce, na polaridade entre normal e patológico, ela é vista como a sempre errada e – claro – sempre louca. E, sempre, as mulheres negras são as que mais adoecem nesse processo (Zanello, 2018, p.104), sendo as que mais ficam sozinhas (Pacheco, 2013 apud Zanello, 2018), mais afetadas pelo padrão estético e, em uma sociedade em que ter um marido é até mais importante que votar (Zanello, 2018), encontram-se em lugar de alta vulnerabilidade.Tudo coopera para nosso adoecimento e, por isso, voltamos ao mais básico: não se culpe.  

Uma das formas mais severas de exercício do patriarcado é o silêncio. O silencio para a mulher é um reflexo de sua posição de gênero. Trata-se de uma estratégia de sobrevivencia e enfrentamento, enquanto mantém a paz nas relações amorosas (Diniz e Pondaag, 2004, 2006). E, não somente, mas também os homens aprendem a silenciar mulheres nessa relação. Outra representação de gênero importante a ser destacada é a imposição de uma disponibilidade afetiva e sexual da mulher sempre (Zanello, 2018, p.120). Segalen (1989 apud Zanello, 2018) traz o termo “santa mãezinha” que resume o aspecto religioso, inspirado em Maria que contrapunha a ideia de Eva, a pecadora, a qual pairava sobre as mulheres antes deste século para fugir dessa visão de doença.

Isso tudo nos faz pensar o que é possível ter saúde mental e o quanto não é somente algo que está dentro de nós. E o quanto somos afetados por toda essa história.

Mulheres evangélicas, quem somos em tudo isso?

Os dados desenvolvidos pela FGV (2005), que se utiliza dos parâmetros do Censo do IBGE (2000), apontam que cerca de 50% da população brasileira frequenta cultos regularmente, sendo a maioria mulheres (57%), de idade mais avançada (acima de 50 anos). Estas também se importam mais com a religião que os homens.

A Religião pode reforçar ou transformar as relações de Gênero, pois se a ordem social é sexuada, a Religião também é. Linda Woodhead (2007) indica quais caminhos as mulheres tentam percorrer para lidar com essa Religião. Existe um método de consolidação sob o qual mulheres que querem estar nos espaços conservadores, com uma família e um protetor, precisam se submeter. Há também aqueles onde muitas elaboram táticas, que produzem esferas libertadoras dentro de uma ordem, a fim de construírem uma autonomia relativa. Outras, ainda, fazem uma busca, isto é, transitam dentro da ordem existente, sem se consolidarem. E ainda, citadas pela autora, há mulheres de contracultura, que tentam resistir fora de uma Religião hegemônica. Estas formas de resistência, por muito tempo, eram consideradas menores pelos movimentos feministas, pois, para as epistemologias europeias e seculares, a Religião só teria espaço para a subjugação destes corpos (MAHMOOD, 2010). 

Esta mesma população tem menor acesso ao sistema público de saúde e ao tratamento psicoterápico. Em contrapartida, tem vasto acesso a comunidades evangélicas, cujos discursos apontam para a desvalorização do tratamento psicológico ou, quando respeitado, apoiam uma Psicologia Cristã, não reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia, dentro de nosso Código de Ética.

Qual nossa relação com a saúde mental?

Koenig e Larson (2001) assinalam que a maioria das pesquisas empíricas tem demonstrado uma associação positiva entre a Religião e a saúde mental. Entretanto, também observamos em pesquisas como de Pruyser (1977), que evidenciou costumeira baixa autoestima, perfeccionismos, insegurança e ódio autodirigido entre jovens religiosos. Num estudo específico com mulheres – mães adolescentes –, observaram que as mais religiosas eram as que mais possuíam sintomas depressivos (SORESON et al, 1995). Os autores desta pesquisa formularam a hipótese de que a Religião reenfatizaria os sentimentos de culpa e de vergonha e que encorajariam essas jovens ao isolamento, pois estas teriam comportamentos fora das normas sociais. Essa hipótese, apesar de interessante, não pode ser vista como a única resposta possível sobre a relação entre Religião e saúde mental. A partir da pesquisa de Strawbridge (1998), temos evidências que nos ajudam a complexificar a questão. A partir de seus dados adquiridos com 2537 pessoas religiosas nos Estados Unidos da América sobre o tema de depressão e Religião, o pesquisador percebeu que não é uma questão de melhorar ou piorar a condição psicológica desta pessoa, mas sim que de fato a Religião tem o poder de potenciar aspectos da vida de um sujeito ou até de neutralizá-los.
  
Desse modo, os autores afirmam que a Religião não cria, diretamente, as exigências ambientais, mas pode conduzi-las para uma resposta positiva ou negativa sobre as mesmas. Observando todas essas análises, percebemos que a relação entre saúde mental e Religião é bastante complexa e deve ser olhada dentro desta complexidade.

Dentre as propostas de auxílio a pessoas religiosas que estão em sofrimento especificamente encontramos somente uma que realmente foca nesse público que é a teoria da síndrome do trauma religioso. Essa síndrome é a condição vivida por pessoas que estão lutando para deixar uma Religião autoritária e dogmática e lidar com o dano do doutrinamento. Elas podem estar passando pela quebra de uma fé pessoalmente significativa e/ou se afastando de uma comunidade e estilo de vida de controle. Para a Psicologia, ela se compara à síndrome do estresse pós-traumático complexa e, hoje, já existem três artigos publicados na Cognitive Behavior Therapy Today, escritos pela Dra. Marlene Winell

Mas, aqui no Brasil, não temos um grande cuidado e estudo de como encontras essas mulheres e como acolhe-las. Então queria ouvir perguntas, sugestões, dar dicas de livros, para conversarmos mais. Precisamos então pensar juntos: como podemos cuidar dessas mulheres? Que psicologia precisamos fazer? Como construir um espaço de potência na religião? Tudo isso precisamos pensar para construir uma verdadeira saúde mental em mulheres evangélicas.

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