Uma análise sobre Retalhos
“talvez, pensei, em vez de oferecer graças, eu deveria pedir desculpas,
orar por perdão. Talvez eu devesse sentir culpa. Não. Me sinto puro como a
neve.” (p.313)
Eu já havia pensando em
fazer uma resenha sobre Retalhos há um
tempo, porém, com o comentário de duas amigas minhas tive uma ideia de qual
direção eu gostaria de falar sobre essa obra. E, de uma forma não muito
inovadora, vou falar de forma geral acerca da HQ e fazer uma análise muito
pessoal sobre a questão da religiosidade que aparece sempre. Fico sempre
bastante impressionada que as pessoas leem Retalhos e colocam o foco tão
grandemente no relacionamento dele com a Raina, sem pensar no que a Raina
significou. E, para mim, uma das grandes coisas que a Raina influenciou Craig,
foi a religiosidade.
Retalhos – em inglês Blankets – é uma autobiografia do Craig Thompson
que começa desde a sua infância até o início da vida adulta.Lançada em 2003, venceu
3 prêmios Harvey, dois prêmios Eisner (um dos mais importantes prêmios da
industria do quadrinho) e foi vencedor do Prêmio Ignatz como Melhor Artista e
Melhor Graphic Novel . Em 2005, foi parar na revista Time como um dos 10
melhores Graphic Novels de todos os tempos. Não é pouca coisa. Aqui no Brasil a primeira
edição é de 2009 e já estamos na sétima reimpressão pela Quadrinhos na Cia. A
editoração é muito boa, com a tradução bem fiel. Minha única crítica seria a
capa não ser grossa, mas não é nada absurdo.
Enfim, sobre a história! Como
citei, é uma autobiografia e Craig é
um cara tímido, de uma família bastante cristã e teve uma infância muito forte
de sua mãe, pai e de seu irmão, a qual brincou muito. É bastante recorrente
durante a narrativa, retomar a temas da infância e situações corriqueiras dessa
época para explicar algo que ele estava vivendo.
Nessas coisas corriqueiras que
ele viveu em sua infância e adolescência, a fé é muito presente. A relação dele
coma sexualidade, com os desenhos, com o estudo, com os outros e com a igreja
são baseadas em textos bíblicos – e como isso não o sacia de suas dúvidas.
Desse modo, a fé o deixava com muitas
dúvidas e culpa. Ao mesmo tempo, ele é muito interessado na fé, tanto que o
pastor da igreja dele pergunta se ele deseja fazer seminário para ser pastor.
Porém, a história cria um sentido
próprio quando no retiro da igreja, Craig
conhece uma menina chamada Raina.
Ela e um grupo de amigos não queriam assistir as atividades do retiro e ele,
que era um crente bem careta, foi se tornando cada vez mais cético ao longo
desse retiro. Aquele tipo de fé de multidão não fazia mais sentido para ele.
Posteriormente a esse acampamento
cristão, Raina e Craig mantiveram contato, a qual envolveu em conversas mais
pessoais acerca da família, da fé de cada um, da sexualidade e da paixão pela
arte. E, visivelmente ao longo da história, você percebe que a Raina é uma
menina com uma visão mais progressista, mais livre para entender o mundo e que
não tem medo de questionar. Nisso, Craig encontra nela uma musa a qual se apaixona
e o faz descentrar dos grandes medos que ele guardava para si. Legal também é
observar a história das famílias dos dois, que são cristãs, porém a de Raina
vive uma fé que se volta mais no ajudar os outros enquanto a de Craig, de criar
uma culpa.
Aqui eu posso entrar mais na questão
da religiosidade. Em tudo, Craig lembra de uma história Bíblica, de um trecho
que ele estudou em Eclesiastes e é muito interessante como ele não simplesmente
“copia” os textos sagrados, mas reinterpreta. Durante o tempo que Craig ficou na
casa de Raina, coisas foram acontecendo – e eu estou segurando os spoilers –
para que ele tivesse uma mudança bastante forte na vida dele. Para dar uma
pequena ideia, na casa da Raina havia um quadro de Jesus que, para Craig,
estava sempre se sentindo triste pelo seu pecado. Porém, em certo momento, que
ele achava correto sentir culpa, olhou para o quadro e havia ali o Cristo
sorrindo para ele.
- Craig, você acredita em Deus?
- É claro.
- Eu também... mas não acredito no céu.
-É?
- Não tenho fé no futuro, seja ele perfeito ou abominável.
(p.295-296)
Momentos como estes durante a
história podem soar para alguns como se a Raina estimulasse o Craig a perder
sua fé. Por exemplo, nessa conversa, esse é o início de uma questão sobre com
que idade pode se dizer que a pessoa tem discernimento para ser salvo ou não. O
jeito em que Raina lidou com isso foi acreditando que não haveria céu, que é
uma forma que muitos teólogos cristãos também acreditam hoje na teologia
liberal. Desse modo, o jeito em que a Raina está sempre reafirmando sua fé e o
faz sempre com um “mas”, não significa para mim que ela não o tenha mais uma
crença. Isso apenas significa que ela saiu do óbvio e caiu numa zona cinza que
as pessoas não sabem lidar muito bem quando o assunto é religiosidade.
Vejo sempre nessa graphic novel
uma fórmula para entender a fé que é “creio,
porém não como todo mundo crê”. O que pode escandalizar é que muitos podem
ver esse “porém” como inaceitável. Uma coisa excluiria a outra. Discordo disso
veementemente, pois a fé da grande maioria da população é cheia de “porém”. Se
a pessoa faz questão de dizer que crê, quem serei eu para dizer que é
ilegítimo, que vai fugir da lógica da fé dela? Ora, a fé sempre foge da lógica.
“Eu a observei. Sabia que ela fora feita por um artista divino. Sagrada,
perfeita e indecifrável.” (p.429)
Em Retalhos, vejo muitas
ressignificações da fé, que saem do preto no branco. Se fosse preto no branco,
a imagem do Cristo não iria sorrir quando ele fez algo pecaminoso. Isso fugiria
da lógica. E, Craig, em um dos momentos que mais me emocionam na história, pega
um outro momento em que poderia dizer “dane-se a fé” e faz uma oração. Ele nem
se deixou levar na culpa da fé tradicional nem deixou se levar a negar aquilo
que acreditava.
“ Obrigada, Deus, pela perfeição de suas criaturas
De pele suave e pálida como o luar
Sob a pele, seus ossos se entrelaçam se ajustando,
Subindo pela crista ilíaca, mergulhando na clavícula.
Obrigada pelo ritmo de seus movimentos
Curvando-se... Espreguiçando-se
Seus contornos envolvendo o cobertor como onda.
Ela é sua, ela é perfeita.
Um templo
Seu cabelo derramando-se sobre as têmporas.
Deitado sobre seu peito, posso ouvir a eternidade....” (p.309 a 3012)
Fiz questão de colocar essa oração
aqui porque dizer que o cara perdeu a fé para mim não o menor sentido lendo um
texto desses. Se ler com cuidado a história, reparando nos detalhes, verá que
as discussões que eles fazem sobre a fé não são mais do que se tem nos
seminários, acerca da esperança, no que crer, o lugar da igreja e da culpa. Todavia,
ao final da história ele fala claramente em falta de fé, de incerteza da
salvação, de que não é mais cristão. Particularmente, eu não acredito nesse
excesso de ceticismo que colocam sobre o Craig.
Aliás, é interessante que
enquanto o Craig fica se questionando dentro de uma fé muito preto no branco de
“a Bíblia precisa estar certa em todos em suas palavras, gramaticamente e
historicamente”, ele desmorona. Aqui retomo, novamente, o fato de isso ser um
questionamento normal. Conto em outro post (aqui) que, quando entrei na
Teologia, escondi minha Bíblia por seis meses por sentir raiva dela, traída pelo
que ela falava porque não poderia ser lida literalmente.
“Eu ainda acredito em Deus, até nos ensinamentos de Jesus, mas o resto do
cristianismo, a Bíblia, as igrejas, os dogmas, só servem para criar limites
entre as pessoas e culturas.” (p.533)
E, sinceramente? Acho que boa
parte das pessoas que se dizem cristãos pensam a mesma coisa. É uma
ressignificação e, para ele, essa ressignificação o fez deixar de se chamar
cristão. Acho, de minha parte, bastante ambíguo alguém que diz acreditar em
Deus – nessa terminologia – nos ensinamentos de Jesus e, posteriormente, dizer que
a Bíblia influenciou ele, dizer-se não cristão. Entenda, não digo que seja
impossível ou errado a pessoa não se dizer cristã crendo no que quiser. Repito, me soa ambíguo. Porém, não
serei eu que vou decidir sobre a fé do autor!
A última vez que ele lê a Bíblia
na história, ele não demonstra raiva ou desprezo pelo que cria. Pelo contrário,
falou algo que eu tendo fé, tranquilamente falaria.
“Folheando as páginas, me encantei com os ‘ou’s – notas de rodapé com
referências a vocábulos duvidosos – ornando quase todas as páginas da Bíblia. O
Velho Testamento era escrito em hebraico; o Novo Testamento, em grego Koiné. Os
dois idiomas são um desafio para a tradução.
Eu gosto dos ‘ou’s. A dúvida me tranquiliza.” (p.563)
Então, Retalhos é meu graphic
novel favorito porque ele fala de fé de uma forma questionadora, dúvidas,
sexualidade, histórias familiares, além de ter um traço muito agradável. Ao
mesmo tempo é simples e poético, bem íntimo mesmo.
Recomendo bastante. Boas
leituras!
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