O silêncio do dia do teólogo.



Hoje dia 30 de novembro, é o dia do teólogo e o silêncio é tão grande que eu mesma pensei em nada escrever, deixar assim mesmo e não comentar sobre isso. Porém, me soa muito errado deixar desse modo, não só porque eu sou teóloga, mas também porque o espaço do ser teólogo é uma conquista, uma história e está muito ameaçado.

Nós vivemos no país chamado Brasil que no último censo de 2010 mapeou um montante de 64,63% de pessoas que se consideram católicas e 22% de evangélicos, um crescimento considerado, lembrando que em 1980 o número era de 6,6%. Além destes, sobram 13,37% de pessoas no Brasil a qual apenas 8% se consideram absolutamente sem religião – sem que, todos os sem religiões sejam ateus e agnósticos. A partir desse mapa, vemos um país religioso, em sua grande maioria cristã e que fazem questão de se dizer cristão para um documento do governo.

Então estudar religião se torna, no Brasil, facilmente uma tarefa de impacto social, que conversa com a realidade e que deve ser ampliada. De fato, tem o acontecido. Os números de faculdades que decidiram abrir cursos de Ciências da Religião crescem e aos poucos – apesar do preconceito da academia que ainda não passou da modernidade ateia – tem ganhado espaço. Vendo tal realidade me alegro muito e tenho admiração por qualquer um que tenha a coragem de encarar um objeto de estudo tão desafiador como a religião. A visibilidade do tema e a possibilidade de o estudar de forma laica serve muito para encararmos esse fenômeno na sociedade. Nisso, beijo os pés da Ciência da Religião e a vejo como parceira.

E onde se encontra a teologia? Para mim, a melhor metáfora para se pensar essa relação é que o cientista da religião estuda o fenômeno de fora enquanto o teólogo estuda de dentro. O teólogo é religioso. O teólogo faz parte dessa população de 92% que professa alguma fé e que não tem a intenção fingidora de olhar o fenômeno religioso sem que isso leve a uma reflexão ética sobre aquela própria fé. O teólogo chega aonde o cientista da religião não deve chegar porque senão está querendo se envolver com algo que é muito pessoal do religioso, que perde seu caráter cientifico. Um teólogo que entende seu papel ético não liga muito se o caráter científico da sua prática pode ser questionável, desde que haja ética e luta.

Por exemplo, se um cientista da religião vai a uma igreja neopentecostal num culto de mulheres a qual estimula a submissão, este pode questionar, com todo o respeito, lembrando que é um fenômeno fora dele. Haverá teóricas que vão rebater essa prática, mas esta não será algo que o pastor irá se utilizar para sua forma de culto. Senão se torna um trabalho colonizador, a qual quem é de fora sabe mais sobre si mesmo que a própria pessoa.  O teólogo, nesse caso é diferente. Ele pode – e deve – usar-se de autores que produzem outras formas de interpretações e contextualizações bíblicas, a fim de deixar claro que tal prática é imoral, anti-ética, opressora e que deve ter um combate direto. Este teólogo vai dar aula para um aspirante ao pastorado e, a partir do chão comum de acreditarem na mesma coisa, vai argumentar com documentos porque se deve produzir outra forma de entender a fé.

Veja, então, que uma produção de conhecimento não substitui a outra, muito pelo contrário, avança nas pesquisas juntas. Todavia, a Ciência da Religião é uma área que tem uma característica que facilita sua expansão que é a laicidade. Não existe teologia laica, porém, a ciência da religião é, em sua essência, laica. E, de uma forma muito complexa, vemos um aprimoramento nessa área – que tem mais chances de ter subsídio do governo – do que a teologia que precisa ter o aporte financeiro de uma instituição religiosa para viver, o que faz essa área de conhecimento ficar cada vez mais restrita.
Porém, seria ingenuidade dizer que o silêncio no dia do teólogo se dá pelo avanço de outra produção de conhecimento sobre a religiosidade. Os atravessamentos são os mais diversos possíveis. Acredito que boa parte do silêncio seja construído pela forma em que a fé cristã se relacionou com a teologia.

Falando de forma muito vaga e desaprofundada, a teologia católica se construiu a partir da concepção de que existia a revelação fundante, que estava na Bíblia e a revelação dependente, que é construída pela tradição. A tradição, porém, não é algo que qualquer pessoa pode produzir, a toa. Alguns, poucos, principalmente homens, se dedicavam aos estudos da Bíblia, dos filósofos e dos conhecimentos religiosos. A população, analfabeta e sem acesso a esse material, passou séculos sem saber o que era estudar por conta própria e visando sempre um santo da igreja para instruir como exercer sua fé.  Assim, o teólogo estava muito longe de ser alguém do povo, que de fato estimulava a reflexão teológica. Era, então, um conhecimento amplo, com muito material, porém de pouca divulgação. Mesmo hoje, com a ampliação do laicato desde o Vaticano II, ainda não é uma área de realmente amplo acesso.

Com a Reforma Protestante, o advento da imprensa e todas as mudanças acarretadas pela modernidade, surge a percepção de que o ser humano é autônomo, por ter acesso direto a Deus, de uma leitura da Bíblia e produção de uma teologia. Tanto que, mesmo havendo divisões da Igreja Católica muito antes do protestantismo, estes rompimentos ganham expansão. Todavia, um pequeno detalhe foi se perdendo no construir do protestantismo a partir desse princípio, que foi o papel do teólogo. Durante um tempo o teólogo protestante possuia o espaço de liderar uma nova forma de pensamento que ainda estava se consolidando, porém, ao ser “consolidado”... Não importa mais. Afinal, a autoridade não está nas Escrituras?

Isso se tornou ainda mais complexo com, no século XIX, o surgimento da leitura fundamentalista, que afirmava a inerrância das Escrituras, mesmo em sua forma gramatical, que apontava para a completa inspiração de Deus. Assim, qualquer interpretação para além da letra, não só não poderia existir como era herética. Isso foi produzir uma forma de se entender o teólogo que permanece até hoje, que corresponde aquele ao qual se dedica a vã filosofias, desimportantes, que nada acrescenta espiritualmente. Além disso, as interpretações se tornam essencialistas, sem serem lembradas de que há uma tradição pelo qual possibilita que leiamos os textos de uma ou outra maneira.

Tal concepção, que já permeava o protestatismo de missão no Brasil, também se faz presente nos movimentos pentecostais e neopentecostais, só que com uma pequena diferença. No caso dos últimos citados, há um foco na experiência do Espírito Santo na vida do fiel, que tem autoridade ainda maior do que a própria Bíblia às vezes. Então se é lido um texto na Bíblia e existe uma interpretação possível, porém o Espírito Santo te conduziu a ver de outra forma, é preferível seguir tal intuição. Assim, o teólogo não é só aquele que se interessa por vã filosofias, mas também aquele que racionaliza em vez de se deixar levar pelo Espírito Santo. Afinal “a letra mata, mas o Espírito vivifica”.

Além disso, igrejas tem muita dificuldade de bancar financeiramente seminários que o próprio público dificilmente tem interesse. Devido a espontaneidade protestante, a maioria dos líderes não passou por um estudo teológico e raramente observam a importância dessa área.

Observando todos esses fatores, nem os próprios religiosos entendem e estimulam o estudo teológico. Se o governo não dá subsídio, nem as igrejas, nem há apoio dos membros e dos seminários, quem somos? Ora, é já uma profissão com pouquíssima inserção no mercado de trabalho e que soa datada após a modernidade que ascende com as ciências humanas – apesar de que a pós-modernidade vem romper com essa concepção de fim da religião. Ora, por que a insistência nessa profissão?
Porque não existe produção de fé que não venha de teologia. O que você acredita é uma teologia. Acreditamos, sim, em revelação, mas sabemos que aquilo que cremos é uma atualização dessa revelação, uma construção a partir de nossa humanidade. Essa construção é produzida por histórica, por transmissão familiar, por retiros espirituais, pelas instituições religiosas que frequentou, pela tradição que estas tem e nenhum de nós pulamos nossas próprias sombras. Então, digo, 92% da população acredita em algo que é fruto de gerações e gerações de pessoas que se deram o trabalho de analisar, traduzir, interpretar, contextualizar, divulgar formas de se entender a fé. Podemos e sempre fazemos, espiritualidades híbridas, porém nunca sem raízes.

Os teólogos são aqueles que cultivaram essa semente, podaram até que você pudesse consumir a religião que você tem hoje. E se não tiver alguém para replantar e fazer tudo novo, a plantação estagna.

Logo você e eu, teólogos e teólogas, tenhamos muito orgulho do nosso trabalho, divulguemos o quanto somos capazes. Não somos profissionais “que não quiseram ser pastores”, “que só dão aula”, somos reinterpretadores da fé.

E se eu falei alguma besteira, por favor me corrija. Tenho muito o que aprender.


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