Branquitude, vida e Teologia
Eu tenho pensado nesse texto há alguns meses.
Toda vez que começava a
escrever pensava no quanto este seria falho e o quanto era capaz de estar prejudicando
alguém. E, sendo mulher, tinha medo de
me tornar aquilo que eu mais odeio: um ser como o feministo, a esquerdobranca,
que quer passar por cima dos debates de negritude achando que está fazendo algo
de bom. Tento me apegar a uma frase que ouvi a qual diz: “o racismo é algo
criado pelos brancos então eles que se virem de resolver.” E foi o pontapé
iniciar.
Falar de branquitude,
vida e teologia é o propósito final de uma sequência longa de pensamentos, a
qual vai vendo que cada vez o buraco é mais embaixo.
Na época de natal,
dezembro, eu fiz uma coisa que sempre quis: comprar um presépio. Sempre gostei
de iconografias, cruzes e símbolos religiosos e faço coleção a fim de melhorar
minha fé: tenho uma cruz contemporânea, uma imagem de cristo latino-americano
de 1970, de uma igreja perseguida no oriente médio a qual cristo tem traços
regionais e pensei “por ser um momento de muita opção, acho possível encontrar
um presépio também diferenciado. De preferência, que representasse a cultura
negra, a fim de me acrescentar.” Contudo, como a história óbvia se fez, não
achei nenhum mesmo procurando exaustivamente.
Porém, algo me deixou
ainda mais intrigada. Em quase todos os presépios tinham um rei mago que era
representado como negro. Um, que se destacava entre os diversos personagens
brancos que estavam lá no oriente médio. Depois, após pesquisar, descobri que
este, conhecido como São Baltasar, era sempre conhecido como o “rei mago negro”,
quase um novo nome de carta de tarô. Uma figura a se procurar, um outro na
história da teologia. E, mais do que um outro na história da teologia, um outro
para mim e para minha cultura. Isso está encrostado em nós.
E, particularmente,
quando falamos do lugar da mulher branca, um grande choque ocorre porque, de
certo modo, nós, mulheres, somos o outro constante. Somos a discípula
esquecida, a mulher sem nome, aquela que não foi contada nos censos. Podemos
até ser bastante interssecionais. Lembrar da rainha de Sabá, de Hagar, da
esposa de Moisés e do etíope evangelizado por Filipe. Mas, quando chega perto
de nós, quando é a hora H, somos que nem Pedro, negamos 3 vezes tudo aquilo que
dissemos que nunca faríamos. E penso qual é o trajeto possível de não cair sempre
nesse espírito de negar quando aquilo confrontar meus privilégios.
E, no meu caso, vejo um
trajeto similar o de Pedro. Após as negações de Pedro 3 vezes, Jesus pergunta se
ele o ama (ágape) e Pedro diz que o ama (filo), mas de um modo ainda muito mais
humano, simplório do que Cristo realmente queria dele. Mesmo assim, Jesus o
chama para apascentar as ovelhas, de se arriscar.
Nós
podemos não conseguir chegar ao ponto que desejamos, mas algo precisa ser feito.
Devemos ansiar o ideal, enfrentando com o que temos de real hoje e, sim, é a
vontade de Deus que nós, brancos, desconstruímos esse pecado estrutural que é o
racismo para que o Reino venha. Para isso, devemos ouvir
a mensagem de mudança de vida (Mt 11.5), acolher em terra boa (Mt 13) e a
praticar (Tg 1.21-25). O que, no caso do pecado do racismo, tem sido para mim o
processo de ouvir nossas irmãs e irmãos negros sobre uma nova forma de convivência,
amolecer a terra de dentro do meu coração a fim de que essa mensagem ganhe
profundidade e, graças a essa sedimentação, começar a viver de modo digno, a
fim de mostrar o Reino ao mundo. E –
minha impressão – que um dos maiores problemas de nós brancos acerca desse
processo é que a gente não está disposto a realmente bater em nossos
privilégios, retirar essa erva daninha de nossa terra, a fim de que a semente
possa de fato brotar. E isso passa por um processo de enxergar coisas que
antes não via sobre meu lugar racial de branca. E, como resposta de oração,
encontrei as pesquisas sobre branquitude.
Dia 13 de Maio foi o dia
da lei Áurea que, simbolicamente, aboliu a escravidão, mas é um assunto desta o
país não quer discutir, pois, nós, brancos saimos da escravidão com uma herança
simbólica e concreta positiva para a sociedade, por termos lucrado por essa
exploração. E, assim, ainda construímos uma sociedade similar a essa que nos foi
“benéfica”, que desumaniza o outro em sua totalidade.
A população negra e não
branca tem lutado bravamente em busca de manter suas raízes, valorizar sua
cultura, sua cor, seus traços e pontuado para nós, brancos, o que temos feito
de errado há muito tempo. Porém, raramente eu vejo pessoas brancas se engajando
a absorver tudo isso que já existe e pensar sobre seu lugar de privilégio. Para
refletir sobre isso, usei alguns artigos que cito abaixo e fiz uma lista em
conjunto com textos que encontrei sobre o tema para quem se interessar mais.
Os estudos sobre a
branquitude demonstraram como a condição social de branco varia dependendo da
época histórica e dos contextos culturais, de como ela deve ser entendida
enquanto um processo, e não um fato em si (TWINE; WARREN, 1997; FRANKENBERG,
1999 e 2001). Nas sociedades marcadas pela colonização europeia e pelo racismo,
a condição de branco implica o acesso a uma série de vantagens sociais,
econômicas e de status (DUBOIS, 1935; BALDWIN, 1984; HARRIS, 1993; FRANKENBERG,
2001). Portanto, a branquitude se caracteriza por exprimir uma posição de
privilégio estrutural, determinada por uma combinação de fatores históricos e
de mecanismos ligados ao presente.
É importante também
pensar a branquitude não como uma categoria uniforme. Ela é sempre conotada por
outras variáveis: gênero, sexualidade, classe, status, religião e
nacionalidade, que devem ser levadas em conta na análise (FRANKENBERG, 1999 e
2001). Isso também implica ter consciência de que a definição de branquitude
muda de acordo com quem a percebe e a estuda, se um branco, um negro ou um
índio. No Brasil, ainda mais, há diferenças regionais na definição de branco e
negro (PINHO, 2009), fazendo com que alguns sejam considerados mais brancos do
que outros. Apesar das mudanças que atravessaram a sociedade brasileira no que
se refere ao racismo, ainda é forte o peso da teoria e da ideologia do
branqueamento, que, do século XIX para o XX, definiram como inferiores as
populações de origem africana e indígena (SKIDMORE, 1974; SEYFERTH, 1989 e
1991). Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da
brancura. De fato, a branquitude se apresenta aos brancos como algo “normal”,
assimilado, muitas vezes transparente, mas não é assim para quem não é branco
(MCINTOSH, 1987; MORRISON, 1992; hooks, 1999; AHMED, 2004)
Pesquisas
sobre o racismo e sobre a branquitude (SILVA BENTO, 1999; PIZA, 2000 e 2003;
PINHO, 2009; MAIA, 2012) falam como esta última representa um valor do ponto de
vista estético (da ascendência europeia) e social (portadora de status), que
orienta as relações sociais e os percursos de vida. Isso só demonstra o quanto
a nossa ideia racial de branco está sempre vinculado com o colonizador, o que
se impõe sobre outras culturas. Bento escreve no seu texto que: “Faz parte da branquitude (conjunto de
características que definem a identidade do branco), o reconhecimento de que
existe uma carência negra, mas não está incluída na branquitude, o outro lado
da moeda, ou seja, a percepção do privilégio branco” (1999, p. 28)
Acho interessante a
descrição de Janet Helms (1990, p. 3) sobre a evolução de uma possível “identidade
racial branca não-racista” que pode ser alcançada se a pessoa aceitar sua
própria branquitude, e as implicações culturais, políticas, socioeconômicas de
ser branca, definindo uma visão do eu como um ser racial. Janet é uma psicóloga
negra e, para ela, existem caminhos para se falar de uma nova forma de se ver
como Branco, sem que isso esteja relacionada a uma diminuição de outras
raças/etnias.
Particularmente, eu acredito
e honro a esperança de Janet. Acho que ela expressa a esperança do Reino, mesmo
sem querer. Uma esperança que ainda sou mulher de pequena fé e me sinto muito
falha no processo. Porém, o processo de ouvir, me questionar e tentar praticar
tem sido uma forma que Deus tem renovado a minhas forças, melhorado meu caráter
e me dado um jeito parecido com o dele – que, se lembrarmos, não tem nada de
branco.
Que venha seu Reino!
Textos recomendados sobre raça e branquitude:
AZEVEDO, Célia M.M. de.
Onda negra medo branco: o negro do imaginán . o das elites do século XIX. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987
BENTO. M. A. S. Branqueamento
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branquitude e branqueamento no Brasil / Iray Carone, Maria Aparecida Silva
Bento (Organizadoras) Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. (25-58)
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