Conto: Natrum Mur
Nos dias em que os deuses viviam
entre nós, Natrum Mur morava nos becos sem saída, lugar pouco frequentado pelos
humanos em sua maioria. Não era dos deuses mais populares, muito menos um dos
mais requisitados porque tinha a fama de absorver todo o passado do mundo e
ruminar todas as tristezas que lá ficavam, emanando uma aura pesada,
depressiva, estanque. Era um deus que chorava sem parar, noite e dia.
Algumas mulheres, sem querer,
encontravam-se com esse deus nas piores noites de suas vidas, quando
encurraladas num beco escuro e sozinhas. Natrum Mur não suportava a presença de
homens e esperavam todos eles partirem para, a sós, se encontrar com as moças
desamparadas e poder retirar delas todos aqueles segundos passados e beber suas
lágrimas até que estas desmaiassem, não se lembrando de mais nada. Nas manhãs
seguintes, eram encontradas essas mulheres – sem memória mais nenhuma do
passado – e todos diziam pela região:
- Natrum Mur, deus das lágrimas, as visitou!
Algo bom elas não devem ter feito.
E elas, sem recordar de
absolutamente nada, não conseguiam se defender, sequer dizer seu próprio nome.
Mal sabiam elas que Natrum Mur estava as salvando dos dias maus e perversos
que, se não fosse por ele, jamais esqueceriam.
Porém, vieram os caçadores de
deuses e estes vigiavam noite e dia todas as divindades que pairavam entre os
seres humanos. Quando estes deuses eram esquecidos pelos seus devotos, os
caçadores o exterminavam, alegando que nada eram úteis para a nossa sociedade
moderna que ascendia. Assim, um a um os deuses foram mortos.
Na noite mais escura e chuvosa, o
jovem cientista, caçador, fiscalizava os espaços mais frágeis da humanidade,
onde se encontrava os deuses em sua maioria e, ali, no beco sem saída, achou
Natrum Mur. Este ente não se importou com a presença do humano, porque do
presente ou do futuro não se importava, apenas do passado que estava dentro
dele e o cientista, intrigado, não foi capaz de matar aquela presença triste e
isolada que nem o ameaçava.
- Natrum Mur, deus das lágrimas e
da retrógrada mentalidade, o saudo porque não se preocupa em me matar! Te honro
pelo amor que tens aos seres humanos, porém não posso, em nome da modernidade,
deixar Sua Alterza livre. O progresso se alastra com rapidez e logo um outro
caçador virá e te matará. A fim de manter sua bondosa vida intacta desses vãos
homens que se levantam, te guardarei na minha ciência, em pequenas cápsulas a
qual, em pequenas doses, poderá ser dado aos seres humanos nos momentos de
sofrimento.
O cientista, então, espalhou
infinitos glóbulos pelo chão e capturou todas as lágrimas de Natrum Mur, até
que mais nada sobrasse da divindade. Colocando as capsulas em pequenos frascos,
correu para o laboratório e avisou para todos os seus colegas de profissão de
que havia encontrado, enfim, a cura para a depressão.
Intrigados com a alegação,
perguntaram para o cientista qual fórmula farmacêutica surgira em sua cabeça
enquanto caminhava na noite mais escura e chuvosa de todos os tempos. Movido
pelo espírito de Natrum Mur, o caçador não conseguia colocar em palavras o que
vivera e chorava copiosamente, deixando seus colegas ainda mais assustados com
o que acontecera com o rapaz.
- Este não é mais capaz de fazer ciência!
Deixe-o para trás, vamos nós mesmos encontrar a cura para a depressão.
Anos se passaram e, de fato, a
profecia do cientista se concretou. A modernidade se alastrou e nenhum deus era
encontrado entre os seres humanos. Os colegas do jovem cientista deram suas
vidas a encontrar a cura para depressão e, em todas as tentativas, faziam
remédios que vendiam em torno de milhares na modernidade que se instaurou. Nenhuma
destas, porém, realmente foi completamente sucedida.
O cientista, o caçador, foi
abandonado pelos demais em um beco escuro, a qual diziam ser o lugar perfeito
para os loucos. Ali o cientista chorava noite e dia e vendia, para sua sobrevivência,
pequenos frascos de um remédio todo especial chamado Natrum Mur. Algumas idosas
que tinham suas filhas com perda de memória, recomendavam este medicamento para
as meninas da vizinhança que não tiveram boas histórias no passado. Assim,
Natrum Mur vive até hoje, consolando mulheres tristes, acolhendo suas dores e
as preservando de um passado ruminante.
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