Marcha das Madalenas - LGBTS
Gn.
1.31 – Viu Deus tudo quanto fizera e eis que era muito bom.
E
viu que era bom! Muito bom! Provavelmente todas e todos que estão aqui hoje já
duvidaram disso. Duvidaram de si, de suas capacidades, de suas identidades ou
de seus desejos.
E
era muito bom! Na nossa fé cristã ouvir isso é um tanto incômodo. Eu nasci na
igreja presbiteriana, calvinista raiz, aonde o conceito de total depravação da
humanidade é central. Não há nada de bom na humanidade, pecadores e por isso
precisamos de graça.
Se perguntarem para mim se creio mesmo nisso,
vou dizer que sim, mas que falta uma boa parte da explicação sobre isso.
Antes
dessa explicação, quero falar um pouco de minha história.
Eu
tinha sete/oito anos de idade quando eu descobri que existia a possibilidade de
se gostar de meninas. Sempre gostei de cultura japonesa e na época eu amava
Sakura Card Captor. Eu era uma menina de cabelo curtinho loiro e tinha uma
melhor amiga, com cabelos longos e escuros. Eu sempre fingia que era a Sakura,
a personagem principal que tinha o cabelo curtinho e ela fingia ser a Tomoyo, a
melhor amiga da Sakura. Ela era linda, tinha uma pintinha no queixo e tinha um
cheiro gostoso. Amava ficar ao lado dela.
No
colégio tinham uns computadores bem antigos que a gente podia usar no recreio
e, procurando umas imagens desse desenho, eu achei uma arte feito por fãs da
Sakura e a Tomoyo, a “grande amiga” da personagem principal. Elas estavam
juntas se beijando.
Eu
já tinha me imaginado beijando um menino, namorando, mas para naquele momento
eu tinha certeza de que talvez eu também quisesse beijar uma menina. Não
qualquer menina, mas aquela minha amiga. Eu comecei a fazer corações
imaginando-a junto comigo. Uma vez eu fui na casa dela brincar e ela disse que
estava cansadinha e queria dormir. Na época eu perguntei se eu podia ficar
perto da cama brincando e a ver dormir e ela deixou. Lembro-me até hoje de meu
coração aquecido, olhando para ela, mexendo seu cabelo. Resumindo, apaixonada
né. E isso era muito bom!
O
tempo foi se passando e isso foi se repetindo. Às vezes gostava de um menino,
às vezes gostava de uma menina. Mas eu não sei exatamente explicitar quando eu
soube pela primeira vez que isso não era bom. Só sei que aos poucos eu percebia
que não era bom.
Enquanto
criança isso ainda passava, mas na adolescência foi se tornando pior. Eu sentia
minha mão fria quando segurava a de outra menina e isso era muito normal no
colégio. Não gostava de ser muito feminina, me chamaram algumas vezes de
sapatão. Mas eu sabia que eu não era porque eu gostava também de meninos.
Então
eu achei que isso fosse passar, que era porque mulheres eram simpáticas,
amigas, cheirosas e bonitas. Achei que isso era uma distorção porque eu havia
sofrido violência sexual na adolescência. Comecei a me forçar a somente pensar
em homens e falar sobre desejo em direção a homens. Todas as vezes que eu
desejei mulheres as pessoas ao meu redor que sabiam viam como ruim, a igreja
dizia ser ruim, então obviamente eu acharia ruim também.
Me
converti e o mais doloroso que me acontecia era achar que para Deus isso não
era bom.
Como
eu amava esse Deus, eu não queria de modo algum fazer algo ruim para ele.
Acreditei profundamente isso, preguei para irmãos LGBTs sobre isso. Lutei
espiritualmente comigo mesma. Ao mesmo tempo esse Deus também me confrontava de
uma forma estranha. Eu conhecia pessoas LGBTs que tinham uma fé maior que a
minha. Cheguei a namorar uma menina católica professora de catequese escondido. Deus não deixava de me abençoar e me abria portas para ministérios que
me confrontava. Aos 18 anos fui fazer teologia e parecia que o confronto só
ficava mais intensa.
Deus
me amava. Fui aos poucos percebendo que isso não era nenhum espinho na carne.
Era só quem eu sou. E era muito bom.
É
muito recente o processo e ainda o armário não foi 100% destruído por medo de
perder oportunidades em igrejas, de estar perto de pessoas que amo. Medo de não
servir ao meu Deus não porque eu esteja em pecado, mas porque seria escândalo
ainda para muitos.
Ser
bissexual ainda é um lugar muito complexo no âmbito cristão. A bifobia é muito
estranha porque ela te faz crer que você não a sofre. A bissexualidade diz
respeito a não monossexualidade, isso é, de você não gostar de apenas um
gênero, mas a leitura de sexualidade que temos na igreja tem o foco no que se
fala da “prática”. Isso é, se você não está tendo um relacionamento homoafetivo
você não tem a “prática” do pecado e, para muitos, faz com que pessoas como eu,
que estou noiva de um homem, não seja lida como bissexual.
Mas,
ao mesmo tempo, ninguém diz a uma pessoa heterossexual quando esta não está
numa relação que ele ficou assexual porque não está em “prática”. A gente sabe
que o desejo, a visão de mundo, as relações mudam quando a gente se interessa
por um ou mais gêneros. Faz parte da vivência bissexual uma pluralidade de
vivências: relacionamentos monogâmicos com homens ou com mulheres ou com outros
gêneros que existirem, relacionamentos não monogâmicos etc. O que me define é o
meu desejo, afinal não pressupomos que um homem heterossexual que se apaixonou
por uma loira que ela deixou de ter desejo por morenas, negras, asiáticas, com
corpos diferentes e contextos diferentes. Ele não vira loirassexual, ele
continua heterossexual.
Além
disso, a bissexualidade é muitas vezes associada a “práticas” pecaminosas:
crescemos ouvindo que bissexuais trazem doenças para dentro das relações, que
traem, que necessariamente não são pessoas monogâmicas ou são fetichistas.
Tudo
isso tira a atenção acerca das relações que mais sofrem com o aumento das ISTs
são as heterossexuais, monogâmicas onde a traição é normalizada por parte dos
homens. Ninguém diria que a prática heterossexual monogâmica é pecaminosa,
mesmo tendo esses casos ruins. Por que dizer isso de outras sexualidades?
Tenho
certeza de que Deus fez a bissexualidade como um desejo sexual que poderia ser
muito bom.
Deus
fez uma humanidade muito boa, deu seu melhor, amou profundamente e se eu
acredito totalmente que o diabo/o mal é infinitamente menor e potente do que
meu Deus, por que eu creria que tudo em nós teria sido destruído? Se Deus fez o
desejo, o corpo, a relação, os afetos e toda a criação, que poder estou dando
ao Diabo em dizer que ele maculou tudo? Ou estamos dizendo que a Bíblia é
mentirosa?
Temos
um erro muito grave que sim, está dentro de nós. O pecado, o errar o alvo,
sendo este Jesus Cristo, que ama a Deus sobre todas as coisas e o próximo como
a si mesmo. Fora disso somos injustos, afinal não há um justo sequer que ame
totalmente ao próximo como a si, iníquos, que tratamos os outros diferentemente
e longe da presença maravilhosa de nosso Jesus.
Por
muito tempo deixei de me amar por isso, me afastei de Deus achando que era
indigna e não amei irmãos LGBTs. Errei o mandamento todo! Errei o alvo
totalmente. Achei que nada era bom.
Quando
eu me perdoei, me amei, passei a amar ainda mais Deus. Ele fez o homem, a
mulher e toda a criação e amou! Por que eu não poderia? Então eu fico feliz e
grata a Deus porque hoje eu vejo a minha bissexualidade e a vejo como muito
boa. Obrigada!
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