Hoje me sinto no topo da montanha


 
Texto bíblico de referência: Dt. 3.27

Quando Martin Luther King jr, 1968, foi falar aos garis que estavam fazendo greve em Memphis, ele diz ter ido ao topo da montanha.  Em suas palavras:
“Temos dias difíceis pela frente, porém isso não importa. Eu estive no topo da montanha. Mas isso não me importa. Como qualquer pessoa, eu gostaria de viver uma longa vida. A longevidade tem seu lugar, porém isso não me preocupa agora. Eu só quero fazer a vontade de Deus! Ele me permitiu subir a montanha e tenho olhado, e tenho visto a Terra Prometida. Pode ser que não chegue lá com vocês, mas quero que saibam esta noite que nós, como povo, chegaremos à Terra Prometida! Por isso estou feliz esta noite; nada mais me preocupa. Não temo a nenhum homem! Meus olhos têm visto a glória vinda do Senhor!"
Foi a última palavra pública de dr. King antes de morrer, logo no dia seguinte, com um tiro. Essa sensibilidade profética não só dizia de sua morte, mas dizia sobre ressurreição, num lugar muito improvável, fora da igreja. Suas palavras não foram em uma pregação, mas numa reunião do sindicato dos garis, que por semanas estavam reivindicando melhores salários e cada dia mais recebiam maior repressão policial até que a Guarda Nacional foi chamada pelo prefeito.

Era guerra, confusão, sangue nos olhos. Devido ao apoio de Martin Luther King jr a greve, muitos acharam que ele tinha perdido seu discurso sobre a não-violencia. No caso, King jr foi apoiar um pastor amigo, ficou de braço dados com os garis e andou com uma placa “eu sou um homem”.

Quando os trabalhadores glorificam a Deus ao ouvir a palavra de Martin Luther King jr é porque claramente sabiam do que ele estava falando. Um dos maiores símbolos de resistência e amor de Deus para a igreja negra é o êxodo, com a liderança de moisés, que libertou da escravidão do Egito para a liberdade da Terra prometida. E, no caminhar no deserto, com maná, brigas, gerações morrendo, corpo envelhecido, quarenta anos de caminhada, costumes e pecados, Moisés erra e, por isso, não vê a Terra Prometida. Ele vê sobre a Montanha a Terra Prometida e não entra. 

Na década de 1960 Martin Luther King Jr. se sentiu como Moisés, vendo o fim de sua jornada, mas mirando para o futuro.

É muito difícil uma pessoa do século XXI subir a montanha e mirar. O mundo está se destruindo, as conquistas estão cada vez mais rápidas. O morrer e o viver hoje parece não abrir uma nova esperança. Afinal, olhar sobre o topo da montanha requer alguns aprendizados e, nessa época em que escrevo, no advento, fica ainda mais claro.

1) A Terra Prometida precisa ser intencionalmente mirada.

O advento é o momento religioso em que, intencionalmente, pensamos na gestação de maria, nas profecias e no nascimento de Jesus. É muito possível passar por esse momento e não se afetar pelo advento.  A intencionalidade é um termo da fenomenologia que demonstra implicação, sentir, aproximar. Nos termos científicos se aproxima do que é o clínico, isso é, o nosso desdobrar em relação ao outro, se abrindo. A exemplo, o psicólogo clínico é o que está aberto ao outro.

Moisés, mesmo não entrando, fez questão de ver. Luther King jr, mesmo não vendo o seu povo liberto, fez questão de ver. E, creio eu, que a pulsão por mirar a Terra Prometida é que fez nascer o profetismo. Por saber que as pessoas precisavam intencionalmente ver a Terra Prometida é que, desde o gênesis, Deus dava dicas sobre o nascimento de seu filho Jesus.

Muitas vezes nossas vidas andam intensas, ocupadas e, por isso, não olhamos. Mas Deus, em Cristo, já revelou tudo. O Reino está expresso, claro e é nosso dever como cristão olhá-lo, deseja-lo, como Paulo fala como se fosse um alvo. Quando temos um alvo temos desejo, alegria, empolgação, como Luther King jr. quando diz que só quer a vontade de Deus. Tenho certeza que ele queria muito, do fundo do seu coração, ver o povo negro livre em terra, mas ele quis mais ver a vontade de Deus que é muito maior. Não tenho dúvida que o desejo da vida de Moisés fosse entrar abraço com o povo na Terra Prometida. 

Contudo, foi o que Deus quis e não ele.

O que temos colocado de tão importante que nos impede de ir até o topo da montanha?

2) A Terra Prometida não aparece em dias de paz.

Uma das consequências da ação intencional é o sofrimento e nisso Jesus foi muito claro. Desde o sermão da Montanha até sua ressurreição mostra que a dor, a luta e os nossos machucados abrem portas para nos aproximarmos de Deus e vermos o que os outros não veem. Por isso tão corriqueiramente os fariseus e os ricos tem olhos e não veem.
Precisa ficar muito claro, todavia, que a ordem não é de sofrer para conhecer a Deus. A ordem é: estejam com os que sofrem, mesmo sem escolher, e vocês verão a Deus.

Sara provavelmente sofreu muito ao envelhecer sem filhos e um dia anjos falam com seu marido que ela verá o topo da montanha. Os seus filhos serão como as estrelas do céu! Quando Ana chora no templo e é vista como bêbada, o sacerdote a chama para o alto da montanha: seu filho unigirá um rei. Aliás, seu filho vai ser nome de livro da Bíblia!

Uma mãe vai cuidar do corpo do seu filho morto com as amigas e, em sua frente, a Terra Prometida! Jesus vive! No advento somos lembrados que a dor de muita gente perpassou até que a salvação chegasse para nós. Maria, em seu puerpério, ouviu de um senhor na igreja chamado Simeão diz que uma espada irá transpassar sua alma devido a morte de seu filho.

Martin Luther King jr. estava em uma das piores greves de Memphis, com maior resistência policial a ponto de parar a cidade. Estar lutando ao lado dos garis foi a oportunidade de Deus mostrar a Terra Prometida ao pastor.

Paulo com frequência fala da dor como uma porta de aprofundamento na relação com Deus.  Na fraqueza Paulo se torna mais maduro, mais sensível, mais acolhedor. Todos os profetas precisaram passar pela dor, se ver como pequeninos para enfim poder ver.

O que tem feito a gente fugir do sofrimento nosso e dos outros? 

3) A Terra Prometida é experimentada pela fé.

Uma das analogias mais fortes para a fé é a gravidez. Desde gênesis 3, é condenada a mulher a dor do parto. Antes de haver anestesia, cesárea, ultrassom, a gravidez era sinônimo de mistério – muito se demorou para se saber de fato como se fazia bebês – e de se preparar para a dor. Essa relação de fé e esperança vinculada a gravidez aparece de gênesis a apocalipse.

Se a fé aparece como a gravidez por toda a bíblia, o fruto é a nossa Terra Prometida, no caso, a instalação do Reino de Deus. Já em Gênesis 3.15 temos uma profecia desse do Reino, do novo Éden que Eva pode mirar. O topo da montanha de Eva mira numa mulher parindo em Belém cerca de 4 mil anos depois. Mira também numa Nova Jerusalém que nem se concretizou ainda em Terra.

A fé na Terra Prometida, o cumprimento do Reino de Deus através de Cristo é o que Jesus tanto insistiu em seus anos de ministério. O Reino de Deus é um grão de mostarda, um noivo que volta de viagem sem avisar. Ter fé é crer que uma história que aconteceu a 800 anos antes, com Jonas e um grande peixe aponta para a morte e ressurreição de Cristo. Ter fé é saber que, mesmo o povo negro não sendo liberto no ano de 1960, Deus irá exaltar aqueles que foram humilhados na Terra. Ter fé é morrer antes de entrar na Canaã, mas ter estado com Jesus, Pedro e João no monte antes da crucificação, cerca de 1500 anos depois.

Por isso ter fé é o firme firmamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se veem. Por causa dessa fé que Lutero se transformou tanto ao ler Romanos 1.17 – o justo viverá por fé. Já é muito difícil imaginar como será minha vida em dez anos, quiçá na Eternidade com Moisés, Luther King Jr, Lutero, Paulo, Jesus, Maria e Eva – eu acredito na redenção de Eva!

Mas é por meio da fé que se vive, no sobrenatural. Pela fé que nós em 2019 acreditamos que um bebê nascido cerca de 2mil anos atrás num estábulo na palestina era Deus. E, pela fé, a gente não só acredita, mas tem certeza que estaremos junto com esse bebê morando na Eternidade. Nesse sentido sou bem calvinista: a fé nos dá certezas mesmo nós sendo inconstantes. E é por ela que veremos a terra prometida!

Por que temos tanto medo, pessoas de pequena fé? (Mt.8.26)

4) Nós estamos na Terra Prometida de nossos antepassados.
É muito comum na história de nossas famílias vermos um desejo pelo progresso familiar. Se seus pais tiveram um casamento ruim, talvez eles se sintam realizados ao ver que os filhos se casaram e foram felizes. Se uma avó não pode trabalhar porque o marido não deixava e a neta pôde, isso é uma realização de toda a família. A primeira pessoa a entrar na faculdade, a primeira pessoa a ter a casa própria, o primeiro neto esperado, enfim. De um modo muito simplório, nós conseguimos nos ver como uma continuidade de nossos antepassados.

Um pouco menos simplório, mas de modo ainda muito material, conseguimos ver em Martin Luther King jr a realização do sonho de muitos negros escravizados nos Estados Unidos da América. Muitos sonharam em serem grandes pregadores e não puderam. Moisés também foi a resposta de oração de muitos hebreus que há gerações haviam sido escravizados e lembravam de José, tão querido na Terra do Egito.

Agora, olhando pelos olhos da fé, vemos que hoje somos parte do que os apóstolos sonharam há 2 mil anos atrás sobre o crescimento da igreja. Nossos joelhos e línguas são citados quando Isaías aponta que todo joelho dobrará e toda língua confessará. Estas pessoas sonharam que nós estaríamos servindo a Deus hoje. Quando pensamos que Jesus é Emanuel, Deus conosco, não é porque ele simplesmente queria estar com o pessoal da Palestina no século I, é porque Ele pensou na gente também, no século XXI, no Brasil, lendo a Bíblia pelo smartfone.

Parte da nossa fé é saber que o Reino é agora e ainda não. É olhar muito mais longe do que o hoje, mas ver o privilégio do agora.

O que queremos dizer quando falamos Venha Teu Reino?

5) Nossos filhos verão a Terra Prometida

Por fim, quero trazer a memória aquilo que me traz esperança. Hoje podemos ver nos assentar no Alto da Montanha e ver, de longe, uma dose dessa Terra prometida.
O que você consegue ver? O que você consegue sonhar?

Penso em João, preso, recebendo uma revelação da parte de Deus. Anjos, trombetas, dragões, bestas, mares, selos, livros, Árvore da Vida... Provavelmente isso é apenas aquilo que João conseguiu expressar em palavras. Como sonhos, temos sensações, imaginamos coisas absolutamente inusitadas, percebemos características nossas e aprendemos como o futuro pode ser.

Se o sonho tem toda essa potência e ele só usa o material que foi armazenado em nosso corpo, imagina Deus ao planejar o futuro para nossos filhos! Se pela fé nossos antepassados sonharam conosco, ainda tem muito mais para sonhar no futuro!

Martin Luther King jr. teve filhos. Moisés teve filhos. Eva, mesmo expulsa do paraíso, teve filhos. Ter filhos, simbolicamente, é acreditar. É olhar a vista no topo da Montanha e glorificar a Deus. É exaltar como o Davi no salmo 126 :
 “1Quando o SENHOR restaurou a sorte de Sião, ficamos como quem sonha. 2Então, a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua, de júbilo; então, entre as nações se dizia: Grandes coisas o SENHOR tem feito por eles. 3Com efeito, grandes coisas fez o SENHOR por nós; por isso, estamos alegres. 4Restaura, SENHOR, a nossa sorte, como as torrentes no Neguebe. 5Quem semeia com lágrimas, com júbilo ceifará. 6Quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os seus feixes”.
Se não nós traremos os feixes, cremos com absoluta certeza que Jesus em sua misericórdia vai restaurar o seu povo, indo nossos filhos e muitos outros irmãos, colher a esperança do porvir.

Que Deus nos abençoe.

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