Gênero, hermenêutica e diálogo
Gênero, hermeneutica e dálogo. Dentro de um grupo
de reflexões em fé e política. O que isso significa?
Estive pensando nessas intercessões, pois, desde que eu me entendo
por gente, meu trabalho é fazer intercessões. Intercessões entre psicologia e
religião, religião e gênero, gênero e psicologia, igreja e academia, luta
política e igreja, luta política e academia. E essa intercessão? O que falar de
gênero, hermeneutica e diálogo? Primeiro, gostaria de falar do que acontece
quando essa mistura não existe.
Hermeneutica e diálogo, sem gênero
Esse talvez seja um dos mais conhecidos por nós, porque vivemos num
ambiente patriarcal, a igreja. Eu cresci na igreja presbiteriana, mais
especificamente na Catedral Presbiteriana e lá todo mundo era cabeção. Me
sentia o máximo porque meus pastores eram mestres e doutores, até fora do país.
Eu me lembro com uns 11 anos eu ouvi uma pregação sobre dupla predestinação e
já sabia o que era isso. Com 15 eu lia Santo Agostinho e levava para a escola
dominical para debater. Minha mãe é professora universitária, meu pai tem
doutorado, então sempre gostei de estudar e dialogar.
Mas a vida já me dava sinais de que algo estava errado. Sou
branca, de classe média, mas eu sou mulher. Eu tenho uma gota de pecado. Quando
eu fui estudar teologia, como evidentemente eu iria fazer, me vi numa sala de
50 pessoas e 6 mulheres. Dessas 6, duas negras. Formamos 10, 3 mulheres, 1
negra. Lá fui entender que as portas se fecham, que as coisas realmente
poderiam não ser conquistadas, dependendo do que você fosse. Não tem
meritocracia. Tem seminário que não aceita professora mulher. Eu vi no meu estágio
em igreja, funcionários comendo quentinhas que ficavam num armário com baratas.
Vi também irmãos negros, moradores de rua, impedidos de entrar no Templo.
Eu vi que sem gênero, raça e classe, a hermenêutica e o diálogo
chega a ser uma crueldade. Como a Grécia democrata que não deixava mulheres,
pobres, escravos, crianças e imigrantes votarem. É uma teologia cruel, pois
fala entre pares.
Gênero e hermeneutica, sem diálogo.
Gênero e hermenêutica tem sido um espaço de crescimento na
academia. O Brasil já produz teologia feminista há cerca de 50 anos, começando
com a geração da Ivone Gebara, depois com a geração de mulheres como a Nancy
Cardoso e chegando hoje conosco, que quer falar de bíblica e falar de gênero.
Coisa linda poder ver as mulheres da bíblia, ver em Deus uma figura feminina,
reconstruir Paulo e potencializar nossa vivência na igreja. Mas, eu me
pergunto, o que mudou em 50 anos por causa da teologia feminista?
Muita coisa - podemos dizer. Já temos algumas pastoras, temos
rodas de conversas como essas. Mas isso seria possível se não houvesse diálogo?
Magicamente a Teologia Feminista por si própria faria o milagre da
transformação do mundo. Aliás, me pergunto se uma boa teologia feminista seria
possível desse modo.
Uma historinha. Outro dia desses fui falar com um grupo de
senhoras de uma igreja sobre Tamar, que teve filho com Judá. Obviamente pensei
em algo para desconstruir a imagem de Tamar de “matadora de homens” e que
enganou o sogro. Estava pronta para fazer uma fala com uma boa hermenêutica e
um recorte de gênero. Mas algo me tocou antes e me fez perguntar do que elas
lembravam da história de Tamar, o que havia as marcado. Algumas então
levantaram a história de Onã, segundo esposo de Tamar, que jogava o sêmen sobre
a terra e, por isso, se condenada a masturbação. Eu não tinha sequer me
lembrado de Onã, mas graças a esse diálogo eu pude reestruturar toda minha
hermeneutica e falar, por exemplo, de masturbação. Percebem o quanto
muda?
Gênero e diálogo, sem hermenêutica
Eu quis terminar com essa intercessão porque essa é a que eu
percebo que mais tem me incomodado. Particularmente, não sou biblista e não
acho que tudo vai ser resolvido lendo a bíblia. Lembre-se do que comentei
anteriormente: é possível lermos a bíblia e esquecermos de algo. É possível
esvaziar a potência da Bíblia. Mas, como uma mulher de fé e de luta eu falo
aqui: é necessário ler a bíblia, ainda em 2019.
Há um tempo atrás fiz meu mestrado na Universidade Metodista de
São Paulo, no núcleo de gênero e religião e minha orientadora trabalhava para a
Capes, então tinhamos alguns deveres naturais de pesquisadores, afinal levamos
a sério isso. Um desses trabalhos que tinhamos que realizar era um mapeamento
das pesquisas de gênero e religião em todo o país, nos últimos 30 anos. Só
isso. Isso porque somos balbúrdia, imagina se não fóssemos.
E algo que eu já ouvia falar, mas hoje tinha dados é que a
pesquisa sobre gênero e religião cresceu, de verdade. Está uma coisa muito
bonita, mas caiu drásticamente as pesquisas sobre Bíblia e gênero, mesmo com o
aumento geral. Proporcionalmente, as mulheres pesquisadoras estão cada vez mais
deixando a Bíblia de lado.
E creio que não só pesquisadoras, mas nós mesmos. Às vezes
criticamos tanto uma igreja ou outra que fazem coisas absurdas, fora da biblia
e não temos um versículo de cor. A gente reclama que na igreja não tem espaço
para mulheres, lutamos em coletivos feministas, mas quantas de nós sabe uma
base bíblica para isso? Alguém sabe quem foi Júnia? Romanos 16.7, alguém poderia
abrir? Há um grande debate na história da igreja para se apagar que Júnia era
um nome feminino, de uma pessoa que estava perante aos apóstolos como um
deles.
O que nos diferencia hoje de outras militantes feministas é esse
lugar. Essa política que se faz na igreja, de busca de direitos, de igualdade
porque cremos que Jesus, nosso Deus, quis isso. Algumas militantes feministas
vão pautar coisas essenciais, cruciais que vamos caminhar juntas, mas a
hermenêutica é nossa arma para um diálogo mais profundo, visceral e que
realmente pode abalar as estruturas da igreja. Sabemos quantos anos a Bíblia
foi usada para justificar a escravidão. Quando Martin Luther King falava em
público, ele fazia pregações, falava de Jesus, falava da Terra prometida. Em
época de contracultura, marxismo, guerra no Vietnã, tem coisa mais
contracultura que usar a Bíblia contra o sistema? Sojourner truth, outro
exemplo, ficou famosa por todo o mundo por sua fala dentro de uma conferência
dos direitos das mulheres, no séc XIX, “não sou eu uma mulher?”. Pouca gente
sabe é que esse nome ela se deu devido ao seu chamado missionário: Peregrina da
Verdade! E nessa mesma fala tão conhecida ela diz algo que faço questão de
retomar. Ela diz:
“Então aquele homenzinho vestido de preto diz que
as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não
era mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De
Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher
que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça
para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr
novamente o mundo de cabeça para cima!”
Essa fala é o exemplo mais claro e mais perfeito do que é gênero,
hermenêutica e diálogo. Esse é um exemplo profundo de que essa tríade produz
política. Então, me pergunto e pergunto a cada uma de nós: qual ponto estamos
esquecendo nessa triade. Será que estou estudando bastante gênero, lendo a
bíblia e não tenho compartilhado? Será que eu leio a bíblia, prego e esqueço de
todas as mulheres que compõem o ministério de Jesus? Será que eu me deixei
levar pelo sentimento de que a luta popular, sozinha, sem fé, é que muda a
vida? Levo em meu coração a fala e exemplo de Soujourner Truth. Que Deus nos
abençoe.
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