Quem é a mulher para que Deus se lembre?




Na bíblia temos duas histórias paralelas que cabe reparar. Uma é de Abraão e outra de Jefté. Abraão recebeu uma mensagem do Senhor de que ele deveria sacrificar seu filho prometido Isaque. O filho querido, já que Ismael era ilegítimo, filho de uma egípcia e cabe pontuar, africano. Isaque era de uma linhagem “boa”, filho de Sarah, amado pela família. Este foi pedido por Deus.

Noutra história temos Jefté, um homem de Deus e de família abençoada, da genealogia abraâmica. Um juiz de Israel que, por meio de negociações com os povos vizinhos não conseguiu ter paz, acirrando um combate face a face. Ele precisava vencer essa batalha e fez um juramento perante de Deus que a primeira coisa/pessoa que viesse a sua frente após a batalha, iria sacrificar ao Senhor. E, ao chegar na terra, a primeira pessoa que vê é sua filha, sua única filha.

No período de Jefté já era conhecida a lei mosaica a qual não só tinha o mandamento principal “não matarás”, como também condenava sacrifícios humanos. Diferentemente de Abraão, que estava seguindo um Deus meio misterioso, a qual não sabia se exigia sacrifícios humanos.

Enquanto Abraão subia o monte para sacrificar Isaque, com todos os preparativos, este realmente não tinha total consciência do que este Deus queria. Afinal, Abraão anteriormente era politeísta e provavelmente já conhecia outros deuses que eram poderosíssimos e pediam sacrifícios, como Asherá e Baal. Toda benção pedia um sacrifício de agradecimento, qual tipo de sacrifício dependia da mitologia. Jefté não. Ele podia se firmar na torah, nas promessas desse Deus que já tinha livrado os seus.

As histórias, todavia, tem fins improváveis: o Deus misterioso de Abraão salva Isaque e o Deus misericordioso de Jefté mata sua filha.

Afinal, Isaque era homem e podia carregar a promessa. Mas, quem era a filha de Jefté? Mulher sem nome, sem marido, sem uma história que interessasse ao povo? Que revolta isso causaria?

Estes relatos bíblicos, diferentemente de como corriqueiramente lemos a bíblia, aponta como estes livros foram escritos não para falar de Deus (afinal, se esse fosse o foco, tentariam pelo menos manter a coerência). Estes livros foram escritos para indicar a importância de se manter um povo, um poder, uma raça escolhida e que, por um acaso, tem um Deus. Por isso é mais importante no relato o fato de Jefté ter vencido a batalha e ser reconhecido como um herói da fé em Hebreus do que o fato dele ser o assassino de sua filha. Deus é o que menos importa. O poder misógino e racista é o que está por trás.

O mesmo poder que tem matado ainda hoje mulheres, negras, negros, indígenas, pobres, policiais, funcionários públicos, sem terra e tantos outros que são descartáveis se não ajudarem a manter o poder. O mesmo poder que matou Marielle, Claudia e tantas outras mulheres negras.

Então surge a pergunta: Por que uma pessoa que não está em um lugar de poder seguiria essa fé?

Primeiramente, como já comentei, o próprio texto tem falhas exegéticas que nos fazem entender que não é um texto teológico. Pense comigo: quando um objeto ou detalhe não é importante para um filme, é muito comum que haja erros de continuidade. Imagine um ator que encena um beijo na filmagem e, ao refilmar a cena, coloca um relógio no braço que não estava lá. Isso é um detalhe que pode passar despercebido. Porém, se mudasse a pessoa a quem ele iria beijar, obviamente todo mundo repararia.

Isso acontece recorrentemente na Bíblia. Quando Deus fala para Adão e Eva que o “homem deixará pai e mãe e irá se juntar com sua mulher”, o escritor não estava se importando com o tema da família porque ficaria óbvio que se Adão e Eva são os primeiros seres humanos, pai e mãe são termos que nem deveriam existir. Da mesma forma com Caim e Abel. Se Caim encontrou uma mulher para casar é porque o autor sabia que não era para se entender os dois como os únicos filhos de Adão e Eva. Aquilo que mantém, que é coerente, o que permanece com força em um pedaço de texto – não, não adianta pegar versículos aleatórios e juntar – é o tema principal da perícope. Dando exemplo a narrativa dos 3 capítulos de Adão e Eva, o tema principal é: Deus é criador e se há erro na criação, é de causa humana. Essa é uma resposta para os povos que adoravam elementos da natureza como deuses e diziam que os seres humanos podiam ser deuses. Mesma coisa com diversos textos do antigo testamento. Assim podemos ler com maior beleza e riqueza esse livro tão intrigante que é a bíblia.

Então, a pergunta muda: Todos os temas que surgem na bíblia compõem a fé cristã?

A resposta é: não.

Por que eu digo não? Por inúmeros motivos. Um dos motivos é o fato de que os escritores dos livros não estavam pensando em nós, hoje. Quando lemos um livro, nós sabemos que há um público alvo, um contexto, uma linguagem e sentidos que somente o povo da época em que foi escrito vai entender perfeitamente. Nós, hoje, ao ler a Bíblia, lemos em uma perspectiva parcial, dos “homens e mulheres do futuro”.

Mas, mais importante que esse motivo, é o fato de que Deus enviou um parâmetro para nós em Cristo. Se Cristo é Deus encarnado, o que a bíblia relata tem que ter coerência. Muitos dizem que isso não faria sentido isso porque Deus pai do antigo testamento é muito diferente de Cristo. Então, sugiro que pense numa intercessão entre três figuras.  Três pessoas relataram o mesmo crime. Uma diz que o suspeito era baixinho e manco. Outro diz que era baixinho e ruivo, o terceiro ainda diz que era baixinho e gordo. O que, então, podemos deduzir do suspeito? Ele pode ter todas estas características, mas ele com certeza era baixinho.

O mesmo ocorre com Deus. Acreditamos que há a revelação de Deus pai, filho e espírito santo, sendo relatadas por diferentes pessoas em diferentes séculos, o que dificulta a precisão. Porém, há alguns temas que se encontram em intercessão destes três: justiça, amor, misericórdia, acolhimento, consolo e isso demonstra que nestes temas há mais certeza que são características de Deus. Outros você encontra relatados em apenas duas pessoas da trindade (afinal, de fato sabemos pouco sobre o espírito santo) e, por último vemos características que só encontramos em uma pessoa da trindade.

Mesmo assim, temos que ver se estas características não se opõem a que com mais certeza encontramos na trindade.  Isso é, se as três pessoas da trindade possuem relatos de apoio a pessoas perseguidas, marginalizadas, a procura de libertação, o deus que mata e mantém o poder entra em paradoxo. Isso é, se cremos que Deus é onipresente, relatos pontuais de deus abandonando o povo perdem sua força na narrativa total.

E ai chegamos ao ponto chave que responde a pergunta que fiz no início. Uma pessoa que não está no lugar de poder pode ter essa fé em Deus porque majoritariamente na Bíblia, em todos os relatos da trindade, é aonde Deus mais está. Deus está com a filha de Jefté em tantos outros momentos da Bíblia, como é com Rute, Ester, Débora, Maria Madalena, Ana. Deus está ao lado do povo africano, como ocorre com o etíope do antigo testamento, com a Rainha de Sabá e com a esposa de Moisés. O Deus do poder não tem tanta voz como o Deus da libertação. Aliás, o próprio poder corrompe Deus e o faz apenas um objeto de desejo. Cristo morreu por essas pessoas, assim como chorou por ver o povo de Israel se afastando dele por poder. O Deus que disse que o povo de Israel não deveria ter rei é o mesmo de Jesus, que foi acusado como Rei dos judeus e só responde “tu o dizes”. É o mesmo que enfrenta o império romano que quer destruir os primeiros cristãos.

Então, sejamos mais honestos em nossas leituras bíblicas. Será que o Deus que você defende tem, de fato, respaldo bíblicos? Se tem, ela se confirma aonde? Como? É coerente com Cristo e o Espírito Santo? 

Que Deus nos abençoe.

  

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