Mulheres e o fundamentalismo: A religião no caso da PEC 181/15 (parte 2)
(continuação)
Quando se fala sobre conservadorismos, no senso comum, se associa a grupos estanques,
porém este é um campo em movimento. Quando se fala de conservadorismos, se deve
perguntar: conservador em relação a o quê? Assim, quando tratamos por exemplo do
termo evangélico, devemos considerar que é um termo em disputa. Os próprios fieis
evangélicos muitas vezes são mais tolerantes que os parlamentares que eles representam.
A pesquisa realizada na marcha para Jesus demonstra que, por exemplo, não é
unanimidade entre os evangélicos a discussão sobre aborto e casamento homoafetivo.
Para isso, é importante conceituar o que é conservadorismo e fundamentalismo.
Almeida (2017) diz que se consolidaram nos últimos anos forças da restrição de alguns
direitos garantidos da Constituição de 1988 e tal movimento tem sido denominado de
“onda conservadora”. Esta muitas vezes, ao ser vinculada a religião causa paradoxos
como a pena de morte, aborto e eutanásia que guardam em comum a condenação à
violação da vida dada por Deus, e caberia e ele encerrá-la. Porém, estas se mantêm como
preservação de uma tradição.
É incomum evangélicos brasileiros se identificarem como fundamentalistas; diferente dos
EUA, onde é possível encontrar essa autodeclaração. No Brasil, os sentidos para os quais
o termo remete têm como referência o terrorismo islâmico. Entretanto, o
fundamentalismo, no início, não era negativo (Fernandes, 2015). Esta surge como uma
forma de ter a identidade mais definidas, de definir bases. Surge a partir da ameaça da
teologia crítica e considera que a identidade para o individuo era também para todo
mundo seguir. Isso entra em choque com uma sociedade plural. Apesar de ser um ideal
típico da modernidade, o fundamentalismo entra em conflito com a democracia. Assim,
surgem fundamentalismos em diversas áreas: político, religioso, etc.
Há uma diversidade
no grupo que o termo esconde.
Entre 1909 e 1915 surge um livreto chamado The Fundamentals, que daria início a esse
termo, o fundamentalismo. Alguns homens foram os precursores desse movimento como
Francis Turrentin, Charles Hodge e Dwight Moody. Assim, há um folego fundamentalista
e isso se perpetua sempre nas passagens de milênios. 1920 foi então auge do
fundamentalismo, sendo que havia já um caldeirão fundamentalista na sociedade e é o
momento em que os missionários do sul dos EUA vêm ao Brasil.
Aproximação ao pentecostal veio pelo desencantamento da racionalidade. Assim
pentecostais se aproximam mais dos fundamentalistas do que por liberais por temas,
inimigos comuns, como “ecumenismo de conveniência”. Na década de 1960 havia a
percepção de que os direitos secularizes eram inimigos dos valores cristãos e depois
construíram grupos de estudos bíblicos para recolonizar tais espaços. Assim, o
fundamentalismo se aproxima do conservadorismo religioso.
Apesar da diversidade, algumas características surgem forte dentro do fundamentalismo.
Alguns são os inimigos comuns que unem, como o feminismo, o aborto e a
homoafetividade. Então, em formas de boicotes ou projetos de leis, esses grupos são
afetados pela universalidade proposta pelo conservadorismo. Assim, evitar sempre a
liderança feminina, a naturalização da lei de Deus e a ideia de serem guardiões dos bons
valores marca este movimento. Apesar de não ser um fenômeno novo a participação de
evangélicos e religiosos na política, certamente a visibilidade junto aos governos
tornaram esses atores mais relevantes para uma análise da política brasileira hoje, dando
destaque são as lideranças evangélicas (Vital, 2013).
No dia 8 de outubro, uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou a PEC
181/15. Esta é uma proposta de emenda constitucional que interfere na interpretação de
todas as leis e portarias que autorizam hoje serviços de abortamento legal no Brasil tendo
por placar foi de 18 votos a um – voto este de uma mulher e a comissão é majoritariamente
formada por homens (LIMA, 2017).
Nessa ocasião, um grupo de deputados, estes religiosos, entoaram em coro "vida sim,
aborto não”. Atualmente, está previsto o direito ao aborto legal no país em três casos:
gravidez originada de estupro, feto anencefálico e risco à vida da gestante. Além disso, a
1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal em 2016 declarou não ser crime a prática do
aborto durante o primeiro trimestre de gestação, independentemente da motivação da
mulher.
As consequências são rapidamente sentidas. O Brasil tem apenas 33 equipamentos
públicos que realizam interrupção da gravidez, no que eram cerca de 60. As maiores
afetadas são mulheres pobres, que já tem pouco acesso a interrupção da gravidez.
Mulheres com mais condições sociais já tem fácil acesso ao aborto por ser comumente
um procedimento simples, seguro e rápido quando realizado de forma profissional.
Uma das consequências mais perigosas se trata a proibição do aborto em caso de
violência. Hoje, quando se fala de estupro no Brasil, fala basicamente de violência sexual
contra meninas, crianças e adolescentes. Estima-se que sejam 500.000 estupros por ano
no Brasil. Apenas 10% disso é notificado e 70% desses 500.000 são contra menores de
17 anos, 50% desses 500.000 são contra menores de 13 anos. Não se vai conseguir
interromper a gravidez nessas situações de total vulnerabilidade. E o mesmo vale para a
porcentagem de estupros contra mulheres adultas.
A ONU Mulheres (2017) já se
posicionou a favor da legalização do aborto e considera a obrigação da gestação como
tortura.
Acoplada a isso, existe o mito de que a mulher que aborta é jovem e irresponsável. Está
no perfil feito pelo Instituto Anis (Diniz, Medeiro & Madeiro, 2016) que essa mulher é
casada, tem filhos, se declara cristã. Ter filhos deveria ser uma responsabilidade parental,
mas não é. Nos lares brasileiros, são as mulheres que cuidam das crianças, dos doentes,
dos idosos, das pessoas com deficiência, são elas que foram educadas para a maternidade
obrigatória, para a família, para o cuidado. Apesar da Frente Parlamentar Católica e a
bancada evangélica estarem avidamente a favor desta PEC, o campo possui tensão.
A CEBI (2017) retoma dados da OMS de 2016 de que a cada dois dias uma mulher morre
no Brasil, vítima de aborto clandestino e que diariamente 4 mulheres morrem nos
hospitais por complicações do aborto. Desse modo, observam o aborto não como questão
de vida do feto, mas como um dos maiores causadores de mortalidade materna entre
mulheres pobres. A noção de defesa da vida permanece, porém, observando o tema como
questão de saúde pública. Assim estas apontam que “como mulheres cristãs não podemos
dizer Amém!”
As Católicas pelo Direito de Decidir (2017) também fazem coro com o comentário da
CEBI. Em seu folheto Percepções sobre o aborto e educação sexual, trazem dados e
comentários importantes para um pensamento contra hegemônico sobre o tema, como
aponta na imagem a seguir, da pesquisa junto com o IBOP Inteligência.
(imagem 1, página 04, retirado do Percepções sobre aborto e educação sexual, 2017).
Como o mesmo aponta, o público não vê o congresso nacional ou mesmo a igreja como
decisiva na escolha acerca do aborto. Comparando os dados de 2010 e de 2017, o número
cresceu de 61% das pessoas que acreditavam que era a mulher que decidia para 64%. O
mesmo folheto aponta que 77% das mulheres que abortam são católicas e 59%
evangélicas. Além disso, 65% dos católicos e 59% dos evangélicos concordam totalmente
ou em parte que as mulheres que abortaram não devem ser presas.
Conclusão:
A religião é um espaço em disputa e, nessa disputa, os corpos femininos são os mais
afetados. O fundamentalismo, que cresce no campo parlamentar nos mostra que tais
conflitos continuaram a existir e as maleabilidades das mulheres dentro da religiosidade
serão cada vez mais necessárias para a manutenção dos direitos mais básicos. Assim,
apesar de revogada a PEC 181/15, ainda há muita luta dentro dos movimentos feministas
cristãos para 2018.
Bibliografia:
ALMEIDA, Ronaldo. A onda quebrada - evangélicos e conservadorismo. Cadernos Pagu, v.50, Campinas: 2017.
BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1980.
BUTLER, Judith. “Gender as Performance. An Interview with Judith Butler”. Radical Philosophy, n.º 67, pp. 32-39 (Interview with Peter Osborne and Lynne Segal), p. 37, 1994.
CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR. Pesquisa CDD/IBOPE Inteligência 2017 – Percepções sobre aborto e educação sexual. Disponível em:
Comentários
Postar um comentário