O preço de olhar
Conta a história Bíblica, que Ló,
parente de Abraão, o deixou para seguir a vida em Sodoma, com sua esposa e
filhas porque lá ele poderia cuidar melhor seu gado que estava crescendo.
Nisso, a família se instalou pela cidade. Porém, Somoda e Gomorra ficarão
conhecidas por ser uma cidade que praticava grandemente a iniquidade.
Antes de mais nada, quero deixar muito claro o sentido BÍBLICO
de iniquidade. Primeiramente, nós temos no antigo testamento uma figura que
comumente é repreendida por Deus que é o iníquo ou também conhecido como o
ímpio que se opõe a outro personagem que o justo. Nesse
sentido, iniquidade vem daquele que não produz equidade, aquele que é injusto
com as outras pessoas. Ímpio, no sentido daquele que não tem piedade, que vem
com violência para com o outro. Nisso podemos ver que hoje em dia temos
muitos ímpios e iníquos dentro do cristianismo, porém deixo essa provocação
para adiante.
E Sodoma e Gomorra estavam
praticando estes malefícios como o profeta Ezequiel deixa muito claro:
Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: Soberba, fartura de pão, e abundância de
ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do
necessitado. E se ensoberbeceram,
e fizeram abominações diante de mim; portanto, vendo eu isto as tirei
dali. (Ez. 16.49-50)
Então a própria Bíblia é clara em demonstrar que o pecado de Sodoma e
Gomorra nada tem a ver com escolhas homossexuais, mas com a injustiça com o
povo. E isso fica muito clara na leitura da história da saída de Ló ao receber
os anjos.
Quando estes chegam na cidade, Ló os chama para descansar em sua casa
porque sabia da violência nas ruas da cidade, tamanha violência que estes o
seguiram até a sua casa em busca desses homens, tentando arrombar a porta.
Motivo muito simples: Ló era estrangeiro.
Provavelmente escondia suas filhas boa parte do tempo para que estas não
andassem na rua e fossem violentadas – como é no dia de hoje. Porém, naquele
dia, sabia que se não cedesse provavelmente eles destruiriam a sua casa. Ló
sabia que eles queriam era estuprar e demonstrar poder sobre os que vieram de
fora e por isso cedeu suas filhas – lembrando, claro, que mulheres nessa época
era posse de suas famílias, assim como o gado, apenas um objeto, sem romanceio.
Porém, os homens de Sodoma perceberam que estes homens, sim, eram
cidadãos de algum grande reino e precisavam “saber seu lugar na sociedade” –
como acontece muito com estupros corretivos e estupros em prisões. Isso nada
tem a ver com sexo, mas sim com expressão de dominação. Por isso, castração química não serve para estupradores. Porque,
desde milhares de anos, o ato sexual forçado – seja homossexual ou não –
representa apenas uma forma de violência que nada está relacionado ao desejo
pela outra pessoa. Perceba que Ló já estava por muito pouco cedendo para a
violência dos sodomitas e, talvez, se os anjos não tivessem chegado a cidade,
estas seriam estupradas – e, se duvidar, a esposa de Ló também.
Este é o contexto da
destruição de Sodoma e Gomorra: violência, impossibilidade de ficar na rua,
repulsa a estrangeiros, fartura para poucos e pobreza para muitos e estupros.
Nada muito diferente do que nós muitos de nós, que vivemos em cidade grande,
sentimos até hoje. Especialmente mulheres e, principalmente, negras em favelas.
Decidi escrever sobre a saída da família de Ló de Sodoma e Gomorra
quando vi, recentemente, uma terrível foto de crianças tendo que passar por
meio de cadáveres na favela da Rocinha para ter que ir à escola. Estas eram
cobertas no rosto por mulheres que olhavam para os corpos mortos. Eles
precisavam não olhar e seguir em frente. Como Ló e sua família tiveram que ser
puxados para fora e nesse caminho, a mulher de Ló – uma mulher sem nome – vira estátua
de sal.
Fiquei pensando sobre as mulheres
que olharam os cadáveres, tanto a esposa de Ló quanto as mulheres em 2017 na
Rocinha. Isso é a vida
delas, é o que elas vivem todos os dias. Como não olhar? Parafraseando a
célebre frase do Tio Bem, em Homem Aranha: com o gênero feminino vem grandes
responsabilidades. Nós não temos como não olhar.
Nosso corpo está em evidência,
nossos filhos, nossa cor, nosso cabelo, nossa roupa. A sociedade está sempre
controlando o que você faz, até mesmo entre quatro paredes. Para controlar se
estás namorando um homem ou uma mulher, se tem filhos ou não, se cozinha ou
não, se está com a vida sexual ativa ou não, a sociedade está sempre olhando. A
única coisa que eles não olham é a violência doméstica. De resto, pode deixar
que eles cuidam da sua vida.
Essa sociedade iniqua, onde
mulheres recebem menos que os homens e se forem mulheres negras, menos ainda.
Que homens podem abandonar seus filhos e a mulher não pode escolher abortar um
feto que nem sistema nervoso tem. Que sofrem violência obstetrícia porque
pressupõem que “mulher negra é forte” e deixam de dar cuidados a elas.
Porém, aí vem uma lição bíblica.
A mulher de Ló, ao olhar para trás, virou estátua de sal. É nesse ponto que eu
me intrigo.
Primeiramente, porque estátua de
sal é uma estátua de areia. Estátuas de areia se desmancham e não permanecem. É
só ver qualquer uma que se vê na praia. Não dura mais de algumas horas ou dias,
se derem sorte. Então, Ló não só não a
esperou, como essa esposa nunca mais conseguiu voltar para sua família depois.
Então, a pergunta que me surge é:
o quanto esse olhar me custa? O
quanto querer olhar para minha sociedade, querer lutar, pode muitas vezes
custar nossa saúde mental, nossa relação familiar e até mesmo nossa vida? Não digo para não olhar porque eu acredito
que a mulher de Ló provavelmente voltou ao normal depois. Mas, quanto nos
custa? Onde achar esse equilíbrio?
Isso pode ser em redes sociais,
em espaços de militância, nos lugares que circulamos: o quanto custa para nós
ver tudo o que nos julgam? O quão é pesado para nós, mulheres, verem o tamanho
do machismo e do racismo que ainda hoje mata. Fico a refletir na sabedoria de
Eclesiastes:
Não sejas demasiadamente justo, nem demasiadamente sábio; por que te
destruirias a ti mesmo? Não sejas demasiadamente ímpio, nem sejas tolo; por que
morrerias antes do teu tempo? (Eclesiastes 7:16,17)
Não sejamos tolas, cegas para realidade porque uma mudança só ocorrerá quando nós nos engajarmos e vermos a verdade, porém, não se destruam. Cuidem de si. Não se deixem paralisar pelos que dizem e o que você vê.
Que Cristo nos traga esse equilíbrio.
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