Nós, teólogos, hipócritas
Então eu disse: Ai de mim! Estou perdido porque sou um homem de lábios impuros...
Isaías 6.5
Isaías 6.5
Outro dia eu estava recolhendo
alguns dados do IBGE de 2010 sobre religião para um trabalho quando eu me
deparei com as seguintes informações:
- 3 milhões de evangélicos no Brasil são declaradamente analfabetos.
- 11 milhões de evangélicos não possuem instrução alguma ou ensino fundamental incompleto.
- 6 milhões vivem somente com um salário mínimo, destes 1 milhão vive com 1/8 de salário mínimo (110 reais).
Senti, logo que de imediato, algo
profundamente incômodo dentro de mim. Esses dados – como qualquer um que existe
nas pesquisas humanas – são pessoas. Com carne, com história, que vive o dia do
teólogo tanto quanto eu. E eu, como
teóloga, senti esse incômodo dentro de mim, como o Espírito Santo me chamando
daquela palavra: hipócrita.
A Teologia é uma área sem muita
precisão de início histórico. Desde que existem seres humanos pensando sobre
Deus(es), se cria teorias e assim surge os grandes discursos das divindades. Ás vezes plural, singular, humana, totêmica,
feminina e masculina, a divindade sempre foi passível de explicações, cultos e
relações. Nesse sentido, Mircea Eliade fez um trabalho pioneiro ao escrever a
História das Crenças e das Ideias Religiões e seus vários volumes.
Com o advento do cristianismo,
esse termo começou a ser incorporado pela igreja católica romana em formação
para descrever as teorias oficiais sobre o Deus Cristão. Triunidade é Teologia,
o plano de salvação é Teologia, a humanidade/divindade de Cristo é Teologia. Os
discursos que fogem disso, que estão na boca do povo, dificilmente eram
aderidos e, quando eram, tinha um sentido muito específico de apropriação
cultural. Por exemplo, a adoração a Santa Tecla, suposta companheira
missionária de Paulo, foi bastante comum na igreja primitiva e logo foi
silenciada em favor do celibato.
Desse modo, a Teologia foi criada a partir da exclusão de discursos de
fé.
Porém, é importante lembrar que
discursos de fé não são ideias desencarnadas, coisas abstratas. Elas habitam em
corpos e normalmente esses corpos são marginalizados, como mulheres, negras,
negros, imigrantes, deficientes, pobres etc. Os discursos sobre fé sempre
estiveram capilarizados, porque a religião cristã é muito bonita em se
manifestar sobrenaturalmente em qualquer um que busca, independente de como a
teologia quer.
Como uma área que possui mais de
mil anos de história, a Teologia sofreu muitas mudanças e, durante seu
percurso, muitos foram os teólogos a se questionar sobre esse lugar de
legitimador da instituição religiosa. Muitos foram os que acreditaram que a
Teologia deveria advir do povo e, assim, começaram a fazer trabalhos de base. O
exemplo mais conhecido disso é a Teologia da Libertação. Posteriormente, vieram
as Teologias Contextuais, a Missão Integral e os diversos movimentos dispostos
a olhar o povo como fonte de fé. Estas,
tão militantes e inovadoras, sentiram que estavam abrindo caminho para uma
verdadeira revolução nesse método retrógrado, elitista e ortodoxo de produzir
teologia.
Contudo, talvez estejamos
muito iludidos.
Não digo isso porque eu não vejo mudanças verdadeiras a partir delas.
Eu as vejo, aposto nelas, afinal eu sou teóloga. Nós, teólogos, sabemos como é
ver uma pessoa ser liberta porque se afastou de uma teologia altamente
opressora. Às vezes eu tenho algumas dúvidas se alguns avanços em relação a
aceitação a homossexuais e a liderança feminina realmente vieram de teologias
contextuais, mas não posso negar que estas tem seu valor para embasar tais
práticas.
Mesmo assim, é inevitável olhar para esses dados e não pensar que ainda
tem algo muito errado com a igreja brasileira. É inevitável pensar que nossa
teologia, com absoluta certeza, não está chegando a milhões de pessoas. Não
só não está chegando como não faz menor diferença para estas pessoas. Já é difícil
fazermos ser entendidos pela nossa comunidade local, pelos nossos amigos e até
mesmo pelos outros teólogos. Não faço
essa crítica para as pessoas que reinvindicam uma teologia ortodoxa, mas para nós
que batemos no peito de que nós não somos como “aqueles cristãos” que “excluem
os outros”. Nós excluímos, sim, com nosso linguajar, com nossas ideologias, com
nosso elitismo. Muitos de nós sequer
conseguem conviver com os parentes que pensam diferente, muito menos saímos de
nossas zonas de conforto para realmente encarar o que o povo pensa da fé.
Recentemente vi uma palestra de
uma pesquisadora, a Carly Machado, que tem acompanhado algumas figuras famosas
no mundo evangélico, dentre elas, a Fernanda Brum. E, em sua fala, ela aponta
que na agenda da cantora é comum ver atividades que vão de Israel a Bangu. Quantos de nós que batemos no peito dizendo
que nos importamos com os marginalizados alargam nossas fronteiras a fim de se
aproximar de outros irmãos da fé?
Faço essa crítica começando por
mim, que sempre achei que a hipocrisia progressista estava nos outros, nos
teólogos moderninhos que já foram machistas comigo, naqueles que exaltam a
teologia da libertação, mas não abrem espaço para a mulher atuar. Não, não são só eles, mas eu também. A
partir do momento que eu tenho esse desabafo ESCRITO enquanto mesma apontei a
quantidade de analfabetos evangélicos do Brasil, tenho que reconhecer que estou
perdida.
Esse termo, teóloga, reivindico
com orgulho por preceder mulheres que ainda estão por vir, mas uso com cuidado
e muita crítica. A teologia merece cada
paulada que leva. Talvez seja hora dela medir um pouco
mais de seu orgulho “desconstruído”.
Fico feliz que já tem gente
disposto a se questionar, a aceitar a crítica e produzir algo bonito a partir
disso. Nesse sentido, acredito que o livro do Ronilso Pacheco marca e
representa essa geração com uma crítica clara, profunda, realista, dura e
propositiva da teologia. Que a gente possa continuar caminhando nessa direção.
E que esses incômodos sejam
recorrentes para ouvirmos melhor os nossos irmãos e irmãs.
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