Religião e infância parte I – Fé (como) das crianças.
“[...] quando os antropólogos dizem, por exemplo, que o ritual simboliza algo, estão partindo de um pressuposto adultocentrico, na medida em que a experiência das crianças com relação ao ritual é totalmente diferente [...]” (PIRES, 2010, p.157)
Estou desejosa de falar sobre
religião e infância há muito tempo. Porém, por incrível que pareça, sabe-se
muito pouco acerca do tema e comenta-se pouco da necessidade de falar sobre
isso. Sim, necessidade. Afinal, vivemos num país com uma população de 24,2% de
crianças até 14 anos e que possui uma base religiosa fortíssima (92% possui
alguma religião professa), sem que isso sequer seja citado. Nossa mentalidade é
tão adultocêntrica que vivemos como se nós fossemos os protagonistas do mundo,
capazes de escolher, de tomar responsabilidades enquanto crianças são seres
secundários.
Da mesma forma com a religião. A
segunda parte desse post será especificamente sobre a relação de crianças com
as igrejas, porém neste quero dar um embasamento mínimo acerca da história da
infância e sua relação com a religião, para que quando você olhar para as
crianças a sua volta, percebam que o assunto não é tão simples (e
desimportante) como parece. Se você trabalha com crianças em uma instituição
religiosa ou com ensino religioso, é o mínimo que deve saber. E estou usando
como base uma pequenina parte das referencias bibliográficas do meu TCC de
Psicologia que se chamou “A escola e a família na religiosidade de crianças na
primeira infância”, que eu disponibilizo caso haja interesse.
Um deles, é claro, é o Philipe Ariès que escreveu História
Social da Criança e da Família. Nesse livro ele ressalta que até o século XVII
não havia a diferenciação entre as crianças e os adultos, sendo a infância não
reconhecida socialmente. Esta pessoa era entendida somente a partir da
fragilidade, porém, ao mesmo tempo, era interessante para os adultos no momento
que poderia auxiliá-los. Assim era comum o trabalho infantil.
Para as crianças menores, que não
podiam trabalhar, o sentimento era de paparicação, não por serem pessoas, mas
por serem engraçadinhos como macaquinhos (essa era uma comparação comum). Isso
se dava muito porque as crianças morriam muito cedo e, como era muito
recorrente, não haja desolação ou luto por isso. Da mesma forma, como a criança
pequena era muito desvalorizada, o infanticídio era tolerado com certa
naturalidade, havendo ambigüidade quanto a noção de feto e de criança, pois
eram dois que se perdiam com muita facilidade. Nesse momento, surge a questão
no meio da Igreja Católica da Idade Média sobre o batismo como uma forma de
salvar os bebês do pós-morte. Nessa época, não se tinha o costume de se batizar
frequentemente, somente em datas especificas de Pentecostes e na Páscoa. Porém,
com essa preocupação primeira sobre o pós-morte dessa criança, começa-se a se
proliferar no século XII batismos quando bem se entendia. Os batistérios eram
cubas grandes e profundas para crianças que já haviam crescido, mas, com essa
mudança estes se tornaram menores.
A partir do século XVI, ocorrem
as primeiras pinturas com representações de crianças propriamente ditas.
Existiam, desde o século XII, expressões de crianças como pequenos adultos ou
até mesmo anões. Nos diários domésticos pouco se dizia sobre elas. A partir do
século XVI, foram-se constituídas imagens centrais na Igreja Católica que
representaram as crianças como os anjos, o Menino Jesus e a Nossa Senhora
Menina, todas estas como crianças nuas. Era comum, todavia, nessa época, não se
ter certeza da idade das pessoas e, no caso de crianças menores, sequer ideia
de faixa etária e de nome. Somente, posteriormente, com o cadastramento pela
Igreja Católica que começaram a especificar as idades e facilitar a diferença
entre adulto e criança.
O local principal de circulação
dessa criança era em outras famílias próximas e, no contexto, o termo “família”
era entendida a partir da proteção dos seus, e não pelo seu papel afetivo. No
século XVII, especificamente, as primeiras escolas surgem e vem substituir a
educação feita no cotidiano das crianças, dentro dessas famílias ampliadas.
Então a infância surgiu, da forma que se entende hoje, devido a revolução
industrial no século XIX e o surgimento das escolas como uma necessidade
pública. Nesse momento se entendia a infância como um processo para se chegar a
razão – que seria o ápice como adulto – e não só criou a ideia de que o lugar
da criança é na escola, mas também de brincar, enquanto o adulto qualificado
trabalhava.
Para as crianças menores, somente
na primeira metade do século XX se criaram as primeiras creches, para os filhos
das trabalhadoras (BRANCO & CORSINO, 2006). Não era comum que se houvesse
essa instituição. Somente na segunda metade do século XX que houve os primeiros
investimentos nas instituições particulares para a infância e, maior
solidificação das creches públicas. Isso, no Brasil, surgiu com as novas leis
para a criança. A valorização da infância no país surgiu com o código de
menores em 1979 e, posteriormente, com o Estatuto da Criança e do Adolescente,
pela Lei n.8069/1990.
E sua religião? Ainda é pouco o
que sabe sobre a como é a religiosidade de crianças. Entretanto tem crescido o
número de pesquisas acerca do assunto (Falcão & Campos, 2009; Bergo &
Gomes, 2009; Campos et AL, 2010 APUD PIRES, 2010). Pires, por exemplo, fez uma
pesquisa muito interessante sobre religiosidade com crianças de zero a onze
anos. Nessa pesquisa elas precisavam desenhar a religião delas. Observando os
dados de crianças menores, se observou que crianças de zero a três anos não
desenhavam nada que possuia o caráter religioso. A grande maioria das crianças
até dez anos, que fizeram desenhos sobre sua religião a representaram com uma
igreja, mas de zero a três anos não havia nenhum desenho de igreja, aos quatro,
apenas 5% e, aos cinco anos, ocorre um aumento brusco para 40%. Os desenhos das mais novas associavam
religião a pessoas que elas encontravam no espaço religioso.
Tal pesquisa levantou, também, a
questão se crianças pequenas sabem distinguir uma atitude religiosa e outra não
religiosa. O que se descobriu é que as crianças não apreendem a religiosidade
de forma simbólica, como o adulto a compreende. O grande motivo, quando
perguntado às crianças sobre o porquê elas iam a igreja era porque outros vão.
Esses outros podem ser a mãe que manda, os amigos que frequentam ou um irmão
mais velho que leva. Ir a igreja não está ligado a rezar ou aprender o
catecismo, mas encontrar-se com outras pessoas. Para a criança, não importa qual
religião frequente, mas os conjuntos de atividades envolvidos e ir com pessoas
a qual ela se afeiçoa (PIRES, 2010). Assim, o frequentar a igreja vem antes de
existir um significado dogmático do ato. Pode-se entender que o adulto vai a
igreja porque é católico, mas a criança é católica porque vai a igreja.
O autor coloca uma coisa bastante
interessante acerca disso, que é o fato das crianças não se perguntarem do
porquê de ir a igreja, quando são pequenas. E, para Pires, não é porque as
crianças não tenham capacidade de se perguntarem sobre isso, mas porque a
religião se basta por si mesma, sem precisar ficar filosofando de um
significado oculto e metafórico. Como ele mesmo diz: o ato encerra em si toda
sua complexidade (Pires, 2010, p.158)
Porém, fica a questão de como
surge esse sentimento religioso como os adultos entendem, já que não é dado
desde sempre e em qual ponto a outras pessoas podem influenciar nesse
comportamento para que a criança se torne religiosa ou não. Bouchard, por
exemplo, fez um polêmico estudo com gêmeos separados na infância, nos Estados
Unidos, a qual mostrou que estes comumente expressam a mesma religião. Mesmo
com estudos que apontam para o componente potencialmente genético da
espiritualidade, o fator social e de quem a criança se relaciona ainda é
preponderante a este. Pode até haver uma disposição, mas até mesmo dependendo
da idade, ela não tem condição de ser religiosa, como Ávila diria no seu livro
Para Conhecer a Psicologia da Religião. Somente depois dos dois anos começam a
usar a linguagem com fluidez e, consequentemente, símbolos, podendo assim
apropriar da religião.
Por causa do seu período
de desenvolvimento cognitivo, ela projeta na realidade seus próprios sentimentos
de forma animista (isso é, seres inanimados possuem realidade própria) ou
artificalista (tudo funciona mecanicamente como um brinquedo). Nesse momento, a
personalidade da criança começa a mudar muito e surgem os primeiros
comportamentos religiosos como beijar uma imagem e repetir uma oração simples
(ÁVILA, 2007).
Dos dois anos aos três anos e
meio, a criança se desenvolve para um comportamento de imitação dos adultos com
quem ela convive e da educação religiosa que recebe. Nesse momento, não existe
uma ideia clara de Deus, de relação com a divindade. A criança, em si, não tem
muita consciência do que é oração e a existência de distintas crenças. Como na
pesquisa de Pires (2010), para a criança toda igreja é igreja. O que se destaca
nessa fase é o interesse dos pais, que se for positivo em relação a
espiritualidade, a criança repetirá o comportamento religioso. Aqui a família e
o ensino religioso começam a se tornar preponderante para a relação da criança.
Entre três e quatro anos, uma
criança criada dentro de uma religião, como o cristianismo, já conseguirá se
referir a Jesus e a Deus, como duas pessoas diferentes. E, devido ao seu
período operatório concreto de acordo com as etapas Piagetianas, a criança
representa Deus com traços humanos. Aqui é o início do sentimento religioso, bem
diferente do adulto, porém mais voltado ao apego do que para a intelectualidade.
Nesse momento existe uma articulação clara com a figura paterna e a afetividade
materna. Além disso, como para as crianças dessa idade os adultos são
onipotentes e dão segurança, a ideia de Deus não é muito diferente de um
adulto. Inclusive, há crianças que rejeitam esta porque somente o pai delas é
poderoso. No início dos quatro anos, surge a antropomorfização da ideia de Deus
para a criança. Devido ao egocentrismo infantil, a divindade começa a ser útil
para os desejos da criança. Isso se expressa nas orações infantis que,
normalmente, pedem por brinquedos, por uma mesada maior, por mais férias e
outros fatores que forem de interesse dela. É comum também observar crianças
conversando com imagens. Somente depois dos cinco anos que a criança começa a
formular o conceito de Deus.
Assim, apesar de não ser um
momento de decisão acerca da espiritualidade da criança, um ambiente favorável
a escolha, que ensine possibilidades e mostre saúde dentro da espiritualidade
pode ser muito importante. Nessa época, a concepção de uma divindade soa como
um conto de fadas, fábulas, e isso vai se manter até os seis anos.
Uma mudança surge no período de 7
a 11 anos, que é o fato de muitas delas estarem começando a escolarização.
Surge, finalmente, as perguntas sobre Deus de forma gradual, sendo mais rápido
nas meninas. É nesse processo que começa a interiorizar-se a noção de Deus como
um homem (do gênero masculino mesmo) muito grande e invisível. A noção de espírito
chega a ser mais preponderante a partir dos 9/10 anos. Interessante observar
que, numa pesquisa de Tanner, que entrevistou 300 crianças cristãs na Holanda,
70% delas não sabiam o que Deus fazia da vida. Algumas achavam que Deus amava,
que Deus ajudava, mas não entendiam “para quê” Deus servia muito. Então,
dependendo da criança, nem faz sentido a idéia de “conversão”, mas isso não
significa que ela não tenha experiência religiosa. Na adolescência, porém, a
criança sai desse modelo de Deus como um personagem, um adulto e começa a
evoluir enquanto a compreensão de conteúdos acerca da divindade em questão.
É claro que isso foi um
mapeamento rápido acerca do tema, que vocês devem procurar de acordo com a
necessidade tua de atuação. Se você é professor e seu aluno não está
respondendo conforme você desejaria, se pergunte: será que estou me conectando
com a forma que ela se coloca no mundo? E não se esqueça: respeite a forma com
que a criança se identifica ou não com a religião, seu jeito de expressar.
Referências:
ARIÈS, Philippe. História Social
da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Ltc, 1978.
AVILA, Antônio. Para conhecer a
psicologia da Religião. São Paulo: Loyola, 2007.
BRANCO, Jordanna Castelo;
CORSINO, Patrícia. O ENSINO RELIGIOSO NA EDUCAÇÃO INFANTIL DE DUAS ESCOLAS
PÚBLICAS DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO: o que as práticas revelam? Revista
Contemporânea de Educação, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p.1-19, jun. 2006.
PIRES, Flávia. Tornando-se
adulto: uma abordagem antropológica sobre crianças e religião.Relig. soc. 2010,
vol.30, n.1, pp. 143-164
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