A fé que elas constroem
Estive ouvindo muitas pessoas.
Muitas mulheres, principalmente.
E tem sido no mínimo curioso
perceber que praticamente todas as mulheres cristãs que tenho conversado
recentemente não estão mais na igreja em que foram criadas. Posso contar nos
dedos aquelas que me disseram que permaneceram na mesma instituição. Também tenho ficado impressionada com a
quantidade de iniciativas, como o Projeto Redomas, Meu Pastor Abusador, dentre
outros, de se relatar experiências traumáticas, além das constantes postagens
em páginas feministas e cristãs aos quais mulheres procuram uma comunidade que
elas se sintam bem.
De início, eu sinto um
estranhamento, incutido desde muito nova, advindo de minha família de igreja
tradicional.
Eu cresci em uma família
evangélica e, na minha época de infância, ouvia muito que quem mudava de igreja
eram os crentes descompromissados. Cresci vendo o boom neopentecostal, com
multidões sendo arrastadas por líderes carismáticos e por promessas de prosperidade.
E ouvindo dos meus pais que um bom cristão não é assim, não se deixa levar por
vento de doutrina. Você tem que ser
muito imaturo espiritualmente para ficar procurando Deus por qualquer canto.
Essas falas de uma família de
gerações na mesma denominação ficam encravadas em nós. Não me espanto quando,
numa festa, um senhor chega para mim e diz que minha família é patrimônio da
igreja presbiteriana. Na porta da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro tem
uma pegada com o nome do meu avô. Noutra igreja presbiteriana, um telefone que
ainda está no nome de minha avó. E tudo parece tão fixo, tão imutável, como um
bom cristão. Como Deus, que não tem sombra de mudança.
Então, o que aconteceu? De uns
tempos para cá, todas nós nos perdemos pelo caminho? Estamos erradas, em
pecado, novamente como Bruxas que mexem com o divino de forma que não deveria?
Devemos levar a culpa por toda a exclusão que sofremos?
Linda Woodhead (2013) percebeu
que algo faltava quando falávamos de sociologia da religião. Afinal, temos
muitas teorias acerca do trânsito das pessoas entre as diferentes formas de
crença, muito trabalho acadêmico sobre como funciona a religiosidade. Porém,
algo muito importante era deixado de lado, que eram as relações de poder
incutidas nessa fé. Então, mulheres não escolhem entrar ou sair de uma
expressão de fé da mesma forma que um homem, porque seu lugar na hierarquia de
poder é diferente. E isso afeta muito, porque as mulheres estão sempre
batalhando para que aquela fé diga algo para elas.
Para autora, desde aquelas
mulheres que usam a militância ao lado de sua religião – chamando a Deusa, reivindicando
luta social – até a mulher mais conservadora da família, elas os fazem a fim de
construir algum sentido para seu gênero. Nem que seja preservando nas tarefas
domésticas, valorizando terapias holísticas, grupos de mulheres na igreja ou
nas ruas; a mulher está sempre sobrevivendo num espaço que a relação de poder é
muito forte. A fé está sempre tentando nos apagar, pois os discursos que temos
são majoritariamente masculinos.
Quantas mulheres conhecemos?
Sabemos que Simonton, primeiro missionário presbiteriano, veio com sua irmã ao
Brasil e, posteriormente, com sua esposa? Sabemos que Joana D’Arc foi morta
porque teve uma visão espiritual para batalhar pelo seu povo? Ou que Santa
Teresa de Ávila tinha orgasmos em suas experiências místicas? Sabemos quem é a
mulher negra de Cantares?
É muito fácil nos culpar pelo
silenciamento que nos é dado. E, assim, caminhamos entre os lugares, buscando
sentido. Souza (2009) mesmo coloca que pelo fato de não estarmos em cargos de
liderança nas nossas comunidades nos facilita muito a circulação entre
diferentes religiões. E, esse dado se confirma, mulheres transitam mais que os
homens.
Transitamos porque queremos uma
forma diferente de conexão com o sagrado, uma nova espiritualidade. Transitamos
porque queremos que nossos filhos se curem naquela igreja que tem mais poder. Porque
temos medo pelo nosso pai com câncer. Transitamos sempre que vemos nossos
maridos perdidos no alcoolismo. E, principalmente, transitamos porque nos
sentimos sós. Muito sós.
Nessa pesquisa de Souza (2009),
vemos estes motivos que fazem as mulheres saírem de suas igrejas e percebemos o
quanto os homens, dentro da ordem sexuada e patriarcal, quase não se preocupam
com esses temas quando vão mudar de religião. Eles já estão preocupados com o
desemprego ou com uma doença pessoal. Para as mulheres não. A sociedade nos
desampara tanto, fomos tão excluídas de nossas comunidades, que só queremos um
lugar que faça sentido, que podemos amar e sermos amadas.
E, sabe menina, isso não está
errado, ok?
A culpa não é tua, é do
patriarcado. Se você não consegue ter aquela religião fixa, imutável, tudo bem.
Deus te fez assim. Deus também não se mostra da mesma forma sempre.
Aliás, se você olhar pertinho,
bem pertinho, ninguém é tão perfeito como a gente se cobra. Ninguém é completamente
simétrico. Há sempre uma pintinha, um pelo, uma sobrancelha que não é igual a
outra. Uma manchinha no pé. Ora, nossas vaginas se alargam e apertam de acordo
com aquilo que elas devem fazer, estão sempre mutáveis. Por que não seriamos nós?
Uma das minhas avós foi eleita a
mulher presbiteriana de 2016 e dorme com lenço da igreja Mundial, do Valdemiro
Santiago. Outra é ex-pastora presbiteriana, mas nunca acreditou em predestinação.
Minha irmã canta no coral e, na hora do almoço, visita uma missa que ela gosta.
Uma amiga lê Casamento Blindado e
freqüenta templo budista. Outra veio da igreja evangélica e gosta de Hare
Krishna. Tem aquela ainda que já deixou para lá, lê a bíblia em casa quando dá.
Ainda uma que curte Santo Daime, mas veio da mesma igreja que eu. Ainda há
aquelas que duvidam da existência de Deus e se converteram a Jesus no mesmo
retiro que mudou minha vida. Somos plurais.
Nem mesmo os homens, tão
prepotentes, são tão inabaláveis como apontam. O pênis é sempre um pouco
encurvado; a barba, um pouco rala e a lágrima, sempre mais do que querem.
Assim, meu pai acompanha com
afinco o Caio Fábio e participa ativamente do culto da Time Square Church pela
internet. Meu avô passou muitos anos na assembléia de Deus antes de retornar ao
presbiterianismo.
E, como quem se torna adulta, vê
que aquilo que nos contaram ser fixo, vai se desfazendo com o tempo. Afinal,
ninguém é presbiteriano, todo mundo é maleável, o sagrado vem de formas que
nunca sabemos. É vento, ruah (substantivo feminino).
Então, mulher, só nós sabemos o
que passamos. Não é tão simples quanto nos fazem acreditar. Não é um “volta lá
para ir ao culto”, “fulaninho sente sua falta”, “o pastor perguntou por você”
que vai fazer parecer que nada aconteceu. É muito mais profundo.
E que cada dia venha um novo caminho.
Referencias:
SOUZA, Sandra Duarte de. Trânsito
religioso e reinvenções femininas do sagrado na modernidade. Horizonte,
Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p.21-29, dez. 2009.
WOODHEAD, Linda. As diferenças de
gênero na prática e no significado da religião. Estudos de Sociologia, vol.
18, no. 34.Araraquara, UNESP, 2013
Que texto maravilhoso!
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