Cristão, vamos conversar sobre suicídio?
(Le Semeur de Van Gogh, que se matou aos 37 anos.)
“Laços de morte me cercaram.
E angústias do inferno se
apoderaram de mim
Caí em tribulação e
tristeza...” (Salmo 1116.3)
Falar de suicídio me faz lembrar
minha avó.
Ou, mais especificamente, do pai
dela, meu bisavô. Este se matou quando ela era pequena.
O motivo nem chega a ser um
assunto comentado na família, já que a própria morte dele não se deve falar. Só
sabemos da história posterior da vida dela. A mãe dela ficou desamparada por um
tempo no interior de Pernambuco e minha avó cresceu com muitos irmãos. Para
logo sair de casa, ficou noiva bem jovem de um primo. Porém, para a
infelicidade de minha avó, ele morreu de uma doença repentina perto do
casamento. Ela não agüentou a tristeza e viu no convento um lugar de cura. Foi
freira carmelita descalça.
Assim, a religião a acolheu, como
ela normalmente faz com os desamparados.
Um belo dia, depois de vários
anos, percebeu que seu lugar não era mais ali. Já estava curada das feridas
anteriores, podia sair. E, assim, abriu uma nova porta para a vida. Casou-se
com meu avô, teve três filhos, dentre eles um excepcional. Fez duas faculdades –
teologia e direito. Foi casada durante 50 anos, até o falecimento do
companheiro. Depois desse falecimento, novamente, deprimiu-se. Voltou a
emagrecer e tem um medicamento de auxilio. Porém, às vezes se lembra da época
do convento, coloca a cruz em cima da cama como quando foi freira. Apesar de
hoje ser evangélica e de meu avô ter sido pastor, lembra de lá, pois foi um
lugar de acolhimento.
Depois dela, muitos outros da
minha família, além de mim, tiveram problemas com depressão e com o tema do
suicídio. E não falo de uma família sem Deus, mas de uma composta de católicos
e evangélicos prioritariamente, com pastores e atuantes.
Você com certeza conhece alguém
ou alguma história de uma pessoa próxima com tendências suicidas. E, na igreja,
a resposta sempre é muito óbvia. O
suicida vai para o inferno, pois a vida é dom de Deus. Porém, é quase uma
contradição, pois na teologia tradicional ensinada na igreja, aprendemos que
Jesus, na cruz, primeiramente se sentiu desamparado por Deus, e depois entregou
o seu espírito. Se a igreja acredita que Jesus não foi morto como um preso
político, mas que se entregou para morrer propositalmente e decidiu a hora de
sua morte, qual a diferença disso para um suicídio? Na teologia tradicional,
Deus se suicidou para nos salvar.
Obviamente, a igreja não quer
falar desse modo para não inspirar adolescentes que ouvem música triste para a
morte. Claro que isso cria uma crise na concepção do porquê viver. Afinal, Jesus
não lutou até o fim. Ele, enquanto ser
humano desamparado pelo Pai, escolheu o próprio fim, foi dono de seu destino. Podia
ter sido forte e esperado morrer pela tortura. Mas o relato bíblico e a leitura
tradicional diz que não foi assim. Deus
quis morrer. Ele poderia ter resolvido o problema da salvação sem que Jesus
se matasse, pois ele é onipotente. Mas
estava no plano de salvação o suicídio de Jesus.
Parece chocante e muito menos
significa que eu acredito nessa teologia, mas é isso que está no cerne da fé
popular. O Cristo morto nas paredes católicas é um Cristo suicida. E quão
hipócritas somos quando lidamos quando alguém decide morrer, esquecendo deste
Cristo que deu a vida. O quão fingido somos quando não encaramos os sofrimentos
daqueles que estão nas nossas comunidades por causa de nossa fé. Por isso eu
escrevi E o fruto do Espírito é tristeza.
Num livro que eu recomendo a
todos, se tiverem paciência de lerem 600 páginas sobre depressão, tem um
capítulo só sobre suicídio. Chama-se O
Demônio do Meio-dia. Nesse capítulo, tiramos algumas dúvidas sobre o tema.
Primeiramente, que o suicida necessariamente é depressivo. Tem pessoas que se
suicidam porque estão vivendo numa dor insuportável, como em muitos casos de
eutanásia. Outras tentam sem pensar na morte em si, querendo ter um controle
sobre suas vidas. E, uma parcela significante, é depressiva. Mesmo assim, é dos
nove sintomas possíveis para o depressivo. Nem sempre o é. Têm depressivos que
jamais desejarão tirar sua vida. Também, nem toda tentativa de suicídio irá se
concretizar num suicídio ou tem o desejo para isso.
E, antes de dizerem que isso é
tema para psicólogo/psiquiatra, eu quero que vocês se lembrem da história da
minha avó. Minha avó nunca procurou um psicólogo, mas uma igreja. Não acredito
que este seja o melhor método de tratamento, mas esta é a nossa realidade. A
população que está nas igrejas não é a rica, que tem condição de pagar
tratamento por fora, que tem uma vida estável. E, mesmo estes ricos tendo
opções outras, sabemos a quem o Eike Batista procurou em um momento de crise:
uma igreja evangélica periférica.
Mas esse não é o povo na maioria
evangélica. Não. As igrejas estão povoadas de pessoas que perderam seus filhos
na guerra ao tráfico, pessoas que sofreram racismo a vida inteira, abuso de
familiares próximos que precisavam cuidar de você enquanto os pais estavam
trabalhando. As igrejas estão cheias de mães solos que tiveram depressão
pós-parto, de mulheres que o marido abandonou. Pessoas que só tem a igreja como
refúgio, que não tem tempo para um teatro, mas tem seu lazer e alegria no
encontro de mulheres no domingo antes do culto. Essas pessoas querem morrer
também. Essas pessoas têm depressão também. Aliás,nesse livro O Demônio do Meio-dia tem um capítulo sobre depressão e pobreza que desconstrói toda aquela
teoria de quem tem depressão é somente rico.
Vamos abrir os olhos para essa
população porque ela existe e está morrendo. O suicídio se alastra
silenciosamente. Além disso, o tabu de que falar estimula as pessoas a se matarem piorou
ainda mais a possibilidade de auxilio. É uma situação mal elaborada, em aberto
e completamente estigmatizada na igreja.
Porém, eu não posso falar de fé evangélica sem falar de esperança
também.
Não aquela esperança que vemos na
igreja, que ignora a morte. Na faculdade de teologia, lembro-me de um professor
que dizia que na igreja evangélica se fala só do Jesus vivo e esquecemos que
ele morreu, enquanto na igreja católica se lembra tanto do Jesus sofrido que
esquece que ele ressuscitou. Porém, é necessária ver uma esperança que não seja
um nem outro. Uma esperança que nem a de
Jesus, que manteve as marcas da cruz.
E, para isso, vou contar um pouco
da minha história.
Quando eu tinha treze anos, eu
estava realmente disposta a tirar minha vida. Sabe, e quando conto isso,
algumas pessoas levam como se fosse uma crise normal de adolescência. Não, não
era. Eu estava no auge quase sete anos de violências cotidianas na escola,
desde xingamentos, roubos e violências físicas. Eu havia confiado minha amizade
num cara que abusou sexualmente de mim. Um homem mais velho. Pedofilia. Confiei
a amizade de outros amigos que viraram as costas para mim quando eu comecei a
piorar. E, infelizmente, eu lembro até hoje de um menino na escola, quando
soube que eu tinha vontade de morrer, que disse: “mas ninguém gosta de você
mesmo. Se mata logo.”.
Sabe, se você já está em um
comportamento auto-destrutivo como eu já estava, de se cortar, de fingir estar
doente para não sair da cama, essa é a gota d’agua. Eu realmente ia tirar minha
vida, planejei. Mas naquela mesma noite, por algum motivo sobrenatural, Deus
apareceu para mim. E, olha, ele nunca tinha aparecido para mim. Eu achava que
ele nem existia mesmo.
E, novamente, a fé foi um lugar de cura.
Aliás, um adendo interessante: eu
descobri na faculdade de psicologia que pessoas com depressão severas às vezes
tem alucinações, se estiverem em crise. Se eu tivesse contato com essa
informação na época, talvez eu me sentisse muito pior achando que estava
enlouquecendo e seguiria em frente na tentativa. Graças a Deus, eu não conhecia
a ciência.
Porém, retornando a fé. Demorei
mais de um ano para ter outra experiência com Deus, mas essa experiência
primeira me fortaleceu para procurar terapia, conhecer outras pessoas, mudar de
escola. Na minha segunda experiência, que me fez ter certeza que eu seria
evangélica, tive uma visão de Jesus, com o braço aberto, sangrando e, naquele
instante, percebi que Jesus era o Deus que me entendia, porque ele sabia o que
era estar machucado.
Faz-se dez anos desde tudo isso.
E eu só vivi esses dez anos porque da mesma forma que Jesus ressuscitou, eu
ressuscitei também. Apesar de a igreja falar que só vamos ressuscitar no último
dia, que a esperança é no porvir, não é isso que Jesus ensinou. Jesus não
morreu e disse “está tranquilo porque vocês vão me ver no porvir”. Ele voltou como carne, na história. A
esperança é agora. A ressurreição é agora. O Reino de Deus chegou. Ele é
porvir, mas ele é aqui também. E é muito especial conseguir viver para ver esse
Reino! Não há nada que substitui a vida para Deus, tanto que ele se fez
vida material, como a nossa. Por isso Deus quis que Jesus subisse para dentro
da trindade como ser humano de carne e osso. E não só carne e osso, mas com as cicatrizes da morte, do sofrimento.
Me lembro de olhar para meu braço
e não ver mais cicatriz. Nossa! Quem diria que eu estaria aqui hoje... Não
significa que está tudo tranqüilo. Eu choro muito, sofro ainda de depressão, de
vez em quando preciso de terapia. Tenho dificuldades diversas. Mas ainda é melhor do que antes. A
ressurreição só entende quem passou por ela.
Há esperança
ainda!
“Volta, minha alma, ao
sossego,
Pois o Senhor tem sido
generoso para contigo.
Pois livraste da morte a
minha alma,
Das lágrimas os meus olhos,
Da queda, os meus pés.”
(Salmo 116.7-8)
Muito bom ler esse texto. I've been there twice.
ResponderExcluir