Sobre amizades





Estive conversando com meu noivo sobre o processo de “mudança” para São Paulo e sobre a solidão. A escolha de fazer um mestrado fora de minha cidade, apesar de ser um sonho antigo, tem muitos ônus, principalmente financeiro e emocional. Meus pais, meu noivo e boa parte dos meus amigos estarão no Rio de Janeiro, distantes de mim. Isso vai provocar uma mudança na relação com eles – menos convívio, toque, intimidade. E, necessariamente, vou precisar fazer amizades.

Porém, como se faz um amigo?

Acho bastante intrigante o quanto nós temos informações nas redes e nas pesquisas acadêmicas sobre diversas relações sociais. Como psicóloga, vejo na história da minha profissão um investimento bastante perceptível nas pesquisas posteriores a psicanálise de abordar grupos. Kurt Lewin foi um dos pioneiros dessa área e toda uma psicologia social foi elaborada para que saíssemos cada vez mais de um modelo de estudo intra-psíquico do ser humano para um que fosse contextualizado, a qual é influenciada pelos seus contatos. O boom da antropologia e da sociologia caminha nesse mesmo momento histórico.  

No caso da psicologia, observamos alguns grupos de análise bem específicos. Uma das relações mais antigas da Psicologia é a relação amorosa/sexual/conjugal, conhecidos como casais. Mesmo que a sexologia e a terapia de casal tenham surgido apenas da década de 1970, o sexo é um tema que é pontuado na nossa profissão desde sua formação. Outra relação que é muito clássica nas ciências humanas é a família. Temos terapias específicas para questões familiares, como é a terapia sistêmica. E, por último, queria pontuar as relações de trabalho. Trabalho não só como emprego, mas relações de colegas dentro de uma escola, de hierarquia dentro de serviços em um hospital, entre outros. Fora da Psicologia também não é muito diferente. Observamos blogs, cursos, treinamentos, aplicativos, para resolver problemas familiares, encontrar um companheiro sexual e ser bem sucedido no emprego.

Mas eu sempre achei curioso como a amizade é um tema pouco explorado. Eu me lembro de ter estudado na Psicologia sobre sadomasoquismo e não ter tido uma aula acerca de conflitos e padrões de amizades. Além disso, quando vemos na internet artigos e comentários acerca de amigos, são sempre conjugadas a alguns daqueles temas que citei: amizade no trabalho, amizade de mãe e filha, amizade colorida etc. Chega-se num ponto que, ao conversar com meu noivo sobre aplicativos de conhecer pessoas novas, ele me sugeriu fazer um Tinder e colocar no meu perfil que “é só para fazer amizades”. 

Fico a pensar que as pessoas não estudam sobre amizades porque consideram que esta não é uma relação que possui o que dizer, que é fácil e de pouca elaboração. Porém, isso não é nem um pouco verdade. Sabemos nós que amizades tem conflitos, limites, desencontros, estranhamentos, sentimentos, triangulações (quando duas pessoas se unem contra outra pessoa), ciúmes etc. Isso ao tratarmos de uma pessoa neurótica normal. Se formos pensar em alguém que possui depressão, fobia social, esquizofrenia ou um espectro autista, tal tema se torna um desafio ainda maior. 

Afinal, como me aproximo de alguém? Como eu descubro se a pessoa realmente se importa comigo? Até que ponto posso desabafar com certa pessoa? Quando eu vejo que estou sendo excessivamente grudado com um amigo? Como sentir que aquela pessoa se tornou, de fato, amigo?

Assim, eu recorro à outra área da minha vida que pode me ajudar a ter essas respostas que eu não tive na Psicologia.  Na Bíblia existem algumas direções possíveis para se olhar a amizade. A primeira dessas, que é predominante, diz respeito à amizade como alguém que te influencia, que está presente nos livros de sabedoria e nas cartas. E, então, haveria dois tipos de amigos: os que te corrompem e aqueles que te nutrem espiritual. Basicamente, é a que os cristãos mais enfatizam e isso cria uma gama de complexidades que sempre entram em questão dentro da igreja: um cristão pode ter um amigo verdadeiro não cristão? Qual é o limite afetivo que devo ter com alguém que não professa a minha fé? Nem preciso comentar o quanto tal leitura é separatista e interesseira.

Outra forma de ler sobre amizades na Bíblia está relacionada às histórias bíblicas em si. Aqui temos o maravilhoso livro de Rute, a qual conta seu companheirismo com Noemi, sua sogra. Além de ser um livro interessantíssimo quanto ao tema da sororidade ,que é bem abordado pelas feministas cristãs, tem a amizade sincera de não deixar uma a outra em momento de desespero. É um exemplo bíblico de lealdade, de esforço pelo bem do próximo dentro da amizade e de superação das diferenças étnico-religiosas. E, é claro, não podemos passar por esse tema sem falar da amizade mais polêmica da Bíblia: Davi e Jônatas. Jônatas era filho do rei que queria matar Davi, porém os dois tinham uma conexão tão intensa que há diversos autores que colocam a relação deles como homossexual. E, sendo bem sincera, eu gosto da ambigüidade da relação deles. Se for uma relação homossexual, seria incrível porque isso significaria que um dos reis de Israel cujo é conhecido como “Homem segundo o coração de Deus” seria gay(!). E se não for, de qualquer forma é uma relação antes nunca vista Bíblia, de que os dois choravam juntos, se escondiam da perseguição e foram fiéis até o fim, a qual Davi (um rei), mesmo depois da morte de Jônatas, fez questão de cuidar do filho do amigo que era excepcional (numa época que uma pessoa excepcional era absolutamente excluída e até morta). Eu leio essa amizade como uma das formas mais próximas daquilo que Cristo veio ensinar, de dar a vida em favor de outra pessoa e de sofrer junto. Logo, nessas leituras podemos ver que na Bíblia é possível fazer amigos para além dos interesses religiosos.

Por último, uma direção bem interessante é olhar para Jesus. José Comblin, em seu livro Jesus de Nazaré, fala um pouco da relação de amizade que Ele teve. Apesar de nos lembrarmos sempre da fala do Evangelho de João sobre amigos, é bem expressa que não se trata de uma relação de intimidade. O autor diz que essa amizade corresponde mais a uma tarefa do que a um relacionamento concreto, pois condiciona ao fato de praticar os mandamentos. Tanto que nas relações com os discípulos, pouco interessa os discípulos em si, seus amigos e suas famílias. É uma questão de trabalho e missão. Importante enfatizar, todavia, que isso não fez ser menos difícil a traição de Judas, a negação de Pedro, a dúvida de Tomé e o abandono dos outros. Isso tudo fez parte do desamparo de Jesus na cruz.

A Bíblia fala de outras pessoas que demonstraram amizade a Jesus, principalmente mulheres. Maria Madalena, Joana e Suzana eram pessoas que se sacrificavam pelo ministério de Jesus no suporte e no companheirismo. Mas, aqueles que são vistos como amigos mesmo, mais próximo do que entendemos hoje, são os irmãos Maria, Marta e Lázaro. Apesar de serem amigos que vieram durante a missão de Jesus, foram pessoas aos quais ele freqüentou a casa e, quando Lázaro morreu, Jesus chorou. Infelizmente, pelos evangelhos serem focados na descrição ministerial de Cristo, não temos muitos detalhes de como era a relação afetiva de Jesus com as pessoas.

Com esses textos, temos um material até bem significativo para falar de amizade, para se construir uma teologia sobre isso, porém não vejo muito interesse no tema. Muito pelo contrário, temos uma igreja que pouco se importa com a socialização das pessoas. É só observar como se trata os visitantes. Recentemente, numa pesquisa que utilizei para meu projeto de mestrado demonstrou que um motivo recorrente de mulheres saírem de uma igreja diz respeito à solidão (Souza, 2009).

Tudo o que comentei se aglomera ao neoliberalismo, a ascensão das novas mídias digitais, aos relacionamentos líquidos, ao individualismo e tantos outros temas. E me frustra pensar que estamos longe de podermos aprimorar nossas amizades. Me frustra repetir os mesmos erros com vários amigos diferentes e não ter suporte para acabar com esse ciclo. Me derrota perder amigos sem saber o que posso fazer para melhorar. Sinto-me acabada por ter que me afastar de alguém e não ter o menor jeito de fazer isso. E odeio o fato de achar difícil manter amizades e ter essa barreira na minha vida.

Enfim, convido-os a olhar para as amizades como algo complexo, que não deve ser secundário em nossas vidas.

Referência:
COMBLIN, José. Jesus de Nazaré. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2011.
SOUZA, Sandra Duarte de. Trânsito religioso e reinvenções femininas do sagrado na modernidade. Horizonte, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p.21-29, dez. 2009.

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