[Descobertas] Os últimos dias – Liev Tolstoi


Eu sempre tive certa desconfiança quando observava páginas anarquistas e encontrava nelas textos do Tolstoi. Afinal, quando pensamos em anarquismo sempre vem a mente grandes nomes políticos Bakunin, Proudhon, Kropotkin, entre outros militantes. E, ao pensar anarquismo e cristianismo, outros que pensaram diretamente esse assunto, Jacques Ellul e Vernard Eller. Aos poucos, fui conhecendo esse lado diferente de Tolstoi, bem distinto do livro que eu gosto muito que é Guerra e Paz. E essa outra faceta era impossível de não se apaixonar, pois sou vegetariana, cristã sem dogmas, anarquista e apaixonada por literatura.

Comecei a desvendar por conta própria essa personalidade dele num livro facilmente encontrado em sebos, chamado Últimos Dias, que nada mais é que uma compilação de cartas. A edição é clássica e bela pela Penguin Companhia, de bom tamanho  e excelente grupo de tradutores e comentaristas que se deram o trabalho de apresentar, produzir a linha do tempo e agrupar o material que compõe o livro. O preço, em excelente estado no sebo e sem rasuras era de 20 reais.

Agora, sobre o livro. Como citado, é uma compilação de cartas distintas que faz a obra ser interessante quando observadas especificamente. Porém, são 20 cartas generalistas de Tolstoi, mais uma grande porção de mensagens para pessoas especificas pedaços de diários, de modo que é impossível fazer uma resenha de cada uma. Farei por grandes temas.

Cristianismo

Tolstoi tem uma mudança de vida radical devido a uma conversão muito particular ao cristianismo. Em Uma confissão (1882), o autor relata sua história, como isso aconteceu e de forma muito particular, como é diferente da religiosidade ortodoxa. Sua fé continua cristã, porém voltada a servir a Deus, a partir do amor, da não violência e da instalação do reino de Deus na Terra. A partir disso, a sua fé se torna um fio condutor de todos os seus posicionamentos posteriores: a não violência, o vegetarianismo, a educação etc.
 “Nesse momento, assim como antes, disse para mim mesmo: quando sei que Deus existe, eu vivo; basta esquecê-lo e desacreditá-lo que eu morro. O que são essas ressurreições e essas mortes? Eu não vivo quando perco a fé na existência de Deus; teria me matado há muito tempo se não tivesse uma vaga esperança de encontrá-lo. Pois eu só vivo, realmente vivo, quando o sinto e procuro por ele? “Então o que mais eu procuro?” gritou uma voz dentro de mim. “Aqui está Ele. Ele é aquilo a qual não se pode viver. Ter consciência de Deus e viver é o mesmo. Deus é a vida”. “Viva em busca de Deus e então não haverá vida sem Deus.” E, com mais força do que nunca, tudo se iluminou ao meu redor e essa luz não me abandonou mais.” (Uma confissão, 1882, p.28). 
“A verdadeira doutrina cristã é muito simples, clara e acessível a todos, como dizia o próprio Cristo. Mas só é simples e acessível quando uma pessoa se livra das mentiras em meio às quais todos nós somos criados e que nos apresentam como verdade divida.  (...) Para agir dessa forma, não precisamos de ícones, nem de relíquias, nem de celebrações religiosas, papas, histórias sagradas, catecismos e governo; pelo contrário, precisamos estar completamente livres de tudo isso; porque só uma pessoa livre dessas fábulas que os padres lhe apresentam como única verdade pode agir com os outros como gostaria eu agissem com ela. Só então a pessoa estará em posição de cumprir a vontade, não a própria, não a alheia, mas a vontade de Deus.” (Carta a um oficial de baixa patente, 1899).

A sua diferenciação com a fé ortodoxa deixou de ser apenas uma forma de pensar, ao receber uma carta do próprio patriarca a qual o indicava como uma má influência para a fé de outros ortodoxos russos. Na carta, que o levou a excomunhão, indicava que o autor apresentava uma série de heresias inaceitáveis e destruidoras da fé cristã, as quais o impossibilitava de ser parte desse corpo de Cristo. 
De fato, Tolstoi escrevia, desde antes, suas opiniões teológicas contrárias a igreja e criticava a violência desta ao lado do Estado, porém, na carta de resposta, ele enfatiza que tentou até o fim ficar dentro da igreja, até perceber que tais ritos não faziam mais sentido para ele.
Após a carta de excomunhão, Tolstoi continuou falando de sua fé e, mais do que isso, alertando religiosos que deixassem seus cargos eclesiais e fossem livres da fé ortodoxa como expressa na carta Apelo ao clero, de 1902.
“Não posso de modo algum voltar aquilo de que, com tantos sofrimentos, mal acabei de sair, assim como um pássaro que já voa não pode entrar na casca do ovo do qual saiu.” (Resposta à determinação do Sínodo de excomunhão, 1901).
"Não é que vocês tenham afastado  das pessoas a fonte da água da vida – se assim fosse, de qualquer modo, elas poderiam encontrá-la; o que acontece é que vocês envenenaram essa fonte com seu ensinamento, de modo que as pessoas não podem reconhecer outro cristianismo que não seja envenenado por suas interpretações" (Apelo ao clero, 1902). 
 “A salvação não está nos rituais e nas profissões de fé, mas na compreensão clara do sentido da própria vida.” (Da lei da violência e da lei do amor, 1908).

Vegetarianismo

Desse modo, o vegetarianismo se torna um tema para Tolstoi explorado na carta Um pequeno degrau, 1891. O seu propósito, no vegetarianismo, surge de suas formas. Primeiramente, a partir de um jejum em sua vida ele retoma na abstenção de bebidas e de cigarros até, no final dos dias, a abstenção sexual. Além disso, o vegetarianismo veio, também, na observação de um matadouro. Assimilando a noção de não violência, do “não matarás” que Tolstoi foca grandemente, foi bastante natural para manter a postura ética parar de comer carne.
“Ser bom de verdade sem jejum é impossível como andar sem pernas” (O primeiro degrau, 1891). 
“Mas o que eu quero dizer? Que para ter moral, as pessoas precisam deixar de comer carne? Em absoluto” (O primeiro degrau, 1891).

Não violência

A não violência é outro pilar para se entender o pensamento de Tolstoi. Para o autor, o cristianismo deve ser entendido como uma fé baseada no mandamento de não matar e, desse modo, se engaja a luta pela paz. Tendo trocado carta com Gandhi e feito discursos a respeito do assunto, foi referência em contexto de efervescência de guerras. Tal posicionamento também o fazia ser contra o alistamento militar e ao Estado, pois este se garantia a partir da opressão a partir do exército.
“Se as pessoas compreendessem que não são filhas de nenhuma pátria ou governo, mas filhas de Deus e que por isso não podem ser escravas nem inimigas de outras pessoas, essas instituições perniciosas, insensatas, inteiramente desnecessárias e antiquadas chamadas governos, e os sofrimentos, as violências, as destruições e os crimes que elas provocam seriam eliminados.” (Mas precisa ser assim?, 1900) 
“A doutrina [Cristã], em sua essência, é contra não só matar, mas também qualquer tipo de violência e, portanto, para os governos dominarem o povo e serem considerados cristãos era necessário distorcer o cristianismo e esconder do povo seu verdadeiro sentido, privando assim as pessoas do em que Cristo lhes trouxe. (...)Todos os governos tentam manter essa distorção com todas as forças e tentam não deixar que o povo veja o verdadeiro significado do cristianismo, porque, se o povo visse o verdadeiro significado do cristianismo, entenderia que os governos, com seus impostos, seus soldados, suas prisões, seus cadafalsos, seus sacerdotes embusteiros, não apenas não são os pilares do cristianismo como se apresentam, mas são seus maiores inimigos.” (Carta a um oficial de baixa patente, 1899) 
“E a vontade de Deus não consiste em guerrear e explorar os fracos, mas em reconhecer em todas as pessoas como irmãos e servirmos uns aos outros.” (Carta a um oficial de baixa patente, 1899)

Ciência

Apesar da dedicação pelo tema da ciência na carta Ciência Moderna, de 1989, a centralidade do discurso do autor se mantém na religião. É interessante como o autor desenvolve o que significa metodologia cientifica e o como ela pode ser enganosa ao não ser direcionada corretamente. Com certeza, um pensamento bem a frente do seu tempo.

Arte

A arte também, como todas as áreas para Tolstoi, deve ser realizada a partir de um propósito. Em O que é arte? De 1986, ele define arte como uma possibilidade de comunicação do sensível e, em Sobre Shakespeare e o teatro, de 1906, ele elabora a possibilidade de um teatro religioso, aonde teria como fim a propagação de bons valores.
“Há contos de fadas, parábolas e lendas nos quais são descritas coisas maravilhosas que não aconteceram realmente e jamais poderiam ter acontecido, mas esses contos são verdadeiros, em parte porque revelam que a vontade de Deus sempre existiu, existe e existirá eternamente. Em resumo, revelam a verdade do reino de Deus.” (A verdade na arte, 1887)

Curiosamente, Tolstoi se dedica a fazer um capítulo de quase 80 páginas criticando a obra de Shakespeare. Os argumentos principais do autor é que Shakespeare não faria um texto muito realista e se utiliza de uma linguagem exagerada, com frases soltas e sem muito propósito. Quando a mim, concordo com Tolstoi.

Educação

A educação para Tolstoi tem um propósito libertário, de não violência e de fugir das instituições. Na Carta sobre a educação, de 1902, elabora até um plano curricular básico do que deveria se estudar, reduzindo grandemente o que se ensina nas escolas. Para ele, o foco é o trabalho na terra e o que se aprende durante a vida.

Reforma agrária/ Governo

A partir de toda essa forma de pensamento baseada na fé pelo amor, a qual tem o foco no outro e na não violência que Tolstoi repudia o governo e as injustiças sociais que nele existe. A desigualdade social, a repressão vinda dos militares e as mortes provocadas pelo governo são inadmissíveis num estado, como o Russo, que é vinculado diretamente com a igreja ortodoxa. Assim, além disso, ele mantém claro que o poder vem de Deus, sem dar espaço para o governo corrupto terreno. A proposta, então, do autor é anárquica, como aparece em Patriotismo e Governo de 1900, a qual critica a ideia de patriotismo, a partir do conceito de nação construída a base da exclusão do outro. Além disso, o autor sempre enfatiza a necessidade da liberdade das instituições, mas também da partilha de bens.  
“Observei atentamente tudo o que acontece com as pessoas que professam a cristandade e fiquei aterrorizado.” (Uma confissão, 1882) 
 “Deveria estar claro para qualquer homem culto de nossa época que o direito exclusivo à terra para pessoas que não trabalham nela e que privam o acesso a ela centenas de milhares de famílias miseráveis é algo tão perverso e infame como a posse de escravos.” (Carta sobre Henry George, 1897) 
“Se há uma razão e amor supremo guiando o mundo, se Deus existe, então Ele não pode querer que haja segmentação entre pessoas, que alguns não saibam o que fazer com o excesso de riqueza e desperdicem em vão o fruto do trabalho dos outros; e que outros se debilitem e morram prematuramente ou vivam uma vida torturante de trabalho árduo. Se Deus existe, então isso tudo não pode e não deve acontecer.” (Mas precisa ser assim?,  1900)
Contos

Tolstoi, nesse processo de conversão, não abandonou sua paixão pela literatura, como citamos anteriormente. Porém, o sentido dada a esta escrita é transformada. Aquilo que antes era escrito somente pela arte em si, se transforma num desejo de passar a mensagem de fé da forma mais simples possível. Seus contos são como parábolas, a qual termina com uma lição bastante singela, porém mantendo a forma as suas características como autor.
“Pois agora lembre-se: a hora mais importante é agora, e ela é mais importante porque nela somos senhores de nós mesmos; e o homem mais importante é aquele com quem estamos agora, porque ninguém sabe se ele ainda estará com outra pessoa e a coisa mais importante é fazer-lhe o bem, porque somente para isso foi dada a vida ao homem.” (Três perguntas, 1903)

Cartas pessoais e diários

A vida familiar de Tolstoi talvez tenha sido um dos espaços mais conturbados para ele. Seus filhos não aderiram, em grande parte, o cristianismo e sua esposa não aceitava que este queria se afastar dos bens materiais. Houve, então, um momento em que ele se afastou da esposa, pois a relação era dificílima. Porém, não cessou de mandar cartas e de mostrar o quanto a amava e se sentia frustrado com a falta de sintonia dos dois. Ainda, ele se correspondia com seguidores, fãs de sua obra literária e com grandes personalidades como Gandhi.

Cronologia, notas e Comentários

Por fim, a edição da Penguin ainda complementou todo esse grande material com comentários de estudiosos de literatura russa e com uma cronologia da vida de Tolstoi, a qual dá para perceber seu desenvolvimento como autor e como cristão dentro do que acontecia na Rússia daquele momento. Trata-se de um livro tão completo que, também, faz notas de cada autor que o Tolstoi cita, contextualizando.


Desse modo, é muito impressionante como em um só livro é possível retratar uma personalidade com profundidade. Me deu um apanhado muito bom de sua história e pensamento, logo, recomendo para quem deseja se adentrar no mundo desse autor tão especial.

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