Relato sobre gênero e religião



Nossas histórias são sempre maiores do que nós. Quando já nascemos, parece que o mundo inteiro já lutou para que chegássemos ali, naquele instante, e que pudéssemos resistir para que futuras meninas também nascessem sentindo a mesma coisa. Sou uma mulher de família presbiteriana, uma denominação bastante tradicional no Brasil e fui criada na Igreja Presbiteriana mais tradicional do Rio de Janeiro, a Catedral Presbiteriana, com um centenário de história, homens de toga, corais de costas para o público enquanto recitávamos o boletim. Evangélicos bem tradicionais, a qual em muitos momentos ouvi que eramos mais católicos do que qualquer outra coisa. E, nessa família, fui neta de uma pastora e de uma ex-freira. A primeira se constituiu pastora numa dissidência da Igreja Presbiteriana do Brasil, a conhecida Igreja Presbiteriana Unida. E, minha outra avó, freira carmelita descalça até conhecer meu avô. Duas mulheres sedentas pelo desejo de servir a Deus.

Cresci com esse vigor no sangue, de conhecer mais, de debater, pensar sobre a fé. Com 15 anos sabia que queria estudar teologia, assim lia Santo Agostinho, falava com quem conhecia e sentia já de um modo muito particular que esse caminho não era fácil. Na Presbiteriana do Brasil só existe pastores homens, todos os professores da faculdade de Teologia são homens e dificilmente uma mulher vai estudar teologia. Porém, eu quis e, aos 18 anos, entrei na faculdade de Teologia, enquanto paralelamente fazia Psicologia na UFRJ. Estudei na faculdade metodista e, foi no primeiro ano do seminário que eu todo esse processo de descoberta do feminismo se fez em mim. O ano era 2011 e eu estava encantada com esse curso, tão instingante e profundo e, em uma aula, um professor falou: mulheres, você está aqui porque muitas outras conquistaram esse espaço. Um estalo surgiu em mim e, após esse estalo, uma cascata de questões. Percebi várias violências que havia vivido dentro e fora da igreja. Percebi que de fato se não lutasse, a igreja iria fazer de tudo para que eu ficasse invisível. Percebi o tamanho da complexidade de ser mulher, de nossa relação com a sexualidade, de como não somos quem produzimos nosso conhecimento, de como temos que fazer o máximo de esforço para manter firme. Em paralelo me desconstruía dentro da faculdade de psicologia e me debatia com minha experiência de estagiária dentro de igrejas em que, cada vez mais de perto, via a crueldade com as mulheres e o povo negro que tentava se aproximar dessa bela igreja no centro da cidade. Uma cascata de questões.

Acabei me engajando na luta feminista na UFRJ, pelo espaço crítico e cheio de mulheres que era estudar psicologia. Em 2015 conheci o movimento feminista cristão no Rio de Janeiro, a qual me aproximei e vi ali potencia de apoio, acolhimento a mulheres de diversas denominações. Fiz especialização em ciências da religião e fiz uma crítica a construção da noção de família nos documentos do vaticano e fui sentindo o gosto de fazer a leitura crítica da religião, que já brotava em mim desde a faculdade de Teologia.

Em 2016 entrei no mestrado em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo e, em meu projeto, queria falar de mulheres. Fui encontrada por uma mulher que já admirava muito, a Sandra Duarte de Souza, que é minha orientadora atual e me introduziu num grupo de pesquisa voltado para gênero e religião, o Mandrágora. Ali vi que precisava mergulhar na cascata de vez. Fizemos eventos, nos engajamos na luta contra a violência contra mulher na igreja, trouxemos teólogas do mundo todo para debater com a gente e, em paralelo, pensávamos e construíamos com carinho o coletivo de feministas cristãs e encontrávamos outras vozes progressistas na área de gênero e religião.

Hoje faço parte da Igreja Cristã Carioca, uma igreja aonde temos mais mulheres no conselho que homens e que fazemos questão da representatividade negra no mesmo. Temos feito estudos acerca das mulheres na bíblia e nos comprometemos em todo o culto termos mulheres falando. Acolhemos mulheres que precisam de um espaço para trabalhar e tem sido uma experiência libertadora em comparado ao que já vivi na Presbiteriana. Então, unindo o coletivo de Feministas Cristãs, a militância dentro de minha comunidade de fé e meu grupo de pesquisa-ação, vejo como podemos e devemos unir gênero e religião para potencializar a igualdade entre pessoas, aliando seu cerne espiritual e seu desejo de crescimento pessoal.

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