Corpo, Espiritualidade e Redes Sociais
Se
alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama
a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?
(1 João 4:20)
Todos nós possuímos perguntas
teológicas não respondidas, perguntas estas que pulsam dentro de nós porque a
igreja e as leituras não são capazes de captar totalmente o sagrado. Para além
das questões que jamais serão respondidas – como o sofrimento de Jó que não foi
esclarecido por Deus – algumas outras serão de uma forma inusitada relevadas ao
longo do caminho.
Uma grande inquietação minha, por
exemplo, foi sendo resolvida
teologicamente durante as minhas cíclicas reflexões sobre o espaço virtual.
Eu sinto que a cada ano, ou a cada seis meses, há uma necessidade pessoal minha
de refletir sobre como tenho me desenvolvido na internet e, principalmente, nas
redes sociais. Por mais que nenhum espaço virtual tenha sido citado no mundo
bíblico (por motivos óbvios de anacronismo) ou numa teologia séria não
apocalíptica, parece que finalmente alguns traçados foram criando sentido.
Sempre me perguntei do porquê
nossa teologia precisa que Deus tenha se feito carne. Por que os gnósticos não
poderiam estar certos em enfatizar que Deus apareceu em espírito, afinal se
trata de um deus. Aliás, por quê diversas teologias nas mais variadas religiões
as divindades precisam aparecer como ser humano? Porque o místico precisa tanto se conectar a carne?
Qual o sentido do nosso corpo se
ele está fadado ao sofrimento, a uma não-reencarnação, a morrer mesmo se
convertendo totalmente? Se Deus ama tanto a nós, porque Ele deixaria que
existisse o corpo e nos deixasse morrer nele? E, mais ainda, por que Ele se deixaria levar por esse corpo até a
morte?
Só nessa discussão haveríamos
muitos caminhos teológicos previsíveis a seguir. Teologia da Sarx, isso é, da
carne, é um poço de conhecimento paulino que circula entre as ambiguidades do
espírito contra a carne e o corpo sendo o espaço eternamente marcado por essa
disputa. Haveria também um caminho pela teologia da encarnação, passando por um
Deus crucificado e que sofre como Jurgen Moltmann aprofundaria, mas eu desejo seguir
outros trajetos. Um trajeto que caminha ao lado do desenvolvimento teológico
sobre o corpo, mas que não será retratado a partir de uma dissertação sobre
este, mas a partir das experiências advindas desse corpo.
A geração que caminha numa idade
próxima a minha (entre os 18 aos 35 anos) viveu transformações nos
relacionamentos que nossos pais não tiveram. Apesar de sempre existirem
comunicação pelas cartas, por conhecidos, relações mais misteriosas e de pouco
convívio, eles não viveram as relações virtuais da mesma forma que nós.
Eu tinha uns 10 anos quando eu
conheci pela primeira vez uma pessoa pela internet. Lembro-me bem, pois ela
tinha um blog rosado como este meu, com uma coluna lateral e um outro lado em
que havia o pseudônimo dela (na época, Sandy) e uma foto bastante brega hoje em
dia, mas que era um sucesso na época, tirada de baixo para cima, aparecendo
toda sua franja ruiva. Sandy me convidou para o Orkut antes dele ser
propriamente colonizado pela maioria da população, quando este era lugar apenas
para perfis fake’s. Nesse espaço não poderíamos falar sobre quem nós éramos,
nossos nomes, rostos e muito menos lugares de origens. Era um momento de grande
medo de se apaixonar e ficar sempre na dúvida se o personagem era totalmente
criado ou possuía características reais da pessoa amada.
Aos poucos, o mundo fake foi se
diluindo, se encontrando em alguns submundos e o Orkut, na época, foi
finalmente colonizado por pessoas com nomes, rostos, gostos compartilhados e
que adicionavam colegas de escola e trabalho. Isso criou a ilusão de que agora
não haveria mais problema em se aproximar, se apaixonar ou se envolver em uma
amizade, pois não haveria mais motivo para esta pessoa não ser quem de fato
quem demonstra ser. Não demorou para que
os espaços virtuais se tornassem um lugar de fronteira para a maioria da
população e cada vez se concretizou de que a vida, as pessoas e o que elas são
podem ser encontradas nesses lugares com segurança. Hoje no Facebook, apesar de possuir muitas informações falsas, as pessoas circulam e expõem sobre si com mais tranquilidade que havia antigamente
Não seremos ingênuos nem
reducionistas aqui. Não se trata numa confiança cega nas redes sociais e muito
menos numa paranoia satânica da internet. Trata-se de narrativa, como uma
autobiografia, uma forma de adquirir conhecimento de alguém. Uma, dentre
muitas. Porém, como o espaço virtual não é visto no geral como mais uma forma de
conhecimento ou mesmo mais um lugar. Nós
– não somente, há toda uma nova forma de poder se construindo - o elencamos
como o lugar privilegiado de acesso as informações, que intermedia até mesmo as
nossas relações extravirtuais. Desse modo, antes de checarmos se algo
aconteceu, pesquisamos para ver se está presente na internet. Chegamos até
mesmo a dizer que sabemos a verdade das pessoas pelo que elas expressam nas
redes sociais.
Também não é nenhuma novidade para
pessoas como eu, que viveram mais de dez anos inseridos totalmente na internet,
conhecermos pessoas nas redes sociais,
nos fóruns e blogs e ter a impressão que estes são mais próximos do que aqueles
que convivem diariamente ao nosso lado. Afinal, nas redes, temos todos os
dias informações novas de onde essa pessoa está, do que gosta, do que sonha e o
que sente. Isso seria, teoricamente, o suficiente para dizer que conhecemos
alguém.
Então, qual é a utilidade do
corpo nas relações humanas? O que é presença?
Será que o corpo é realmente necessário para conhecermos alguém? Até que ponto
o corpo não é empecilho, pois nos impede de projetarmos além? Afinal, se não
fosse pelo corpo, qual seria o problema de se apaixonar por alguém que vive em
outro país? Se não tivesse a vida na carne, se um parente fizesse uma piada
machista eu poderia bloquear. O corpo não deveria ser superado? Ele é apenas
uma das coisas a serem expostas nas redes. Sem ele, a vida não seria melhor?
Abraço, beijo e sexo são coisas esquecíveis e adaptáveis, como o filme Her
(2013) já demonstrou.
Então, por que o corpo?
Conversando com meu noivo, aprendi um pouco mais sobre sua dissertação de mestrado em corporeidade,
individualismo e contemporaneidade e, nessa conversa, ele me apresentou melhor um autor chamado Merleau-Ponty,
que faz repudia a ideia que internalizamos tão fortemente de Descartes ao qual pontua que a
existência e experiência vem pelo pensar. A máxima “Penso, logo existo”, o
advento das ciências neuronais, a centralidade do homem racional que não
precisa de nada além da mente foi nos acostumando a negar, cada vez mais, nosso
lado carnal.
Merleau-Ponty (2007) critica
isso. O corpo seria o espaço primordial
da experiência, antes de que o pensamento crie uma impressão, nossa corporeidade
já gravou a cultura, os gestos, minha forma de ser no mundo, inspirada em todos
aqueles que cercam. Para Boaventura (2002), a projeção abstrata, na
verdade, atrofia a experiência e impede de sentir o presente na sua máxima
potência.
A apreensão do mundo não é só da ordem da reflexão, mas do corpo. Quando
somos criança, tateamos nossos pais ou cuidadores e, somente assim, tomamos consciência
da nossa potencialidade, de quem podemos ser. O corpo, então, nos conecta com o
sedimento do mundo. Isso aparece no belíssimo poema do Leminski, ao qual meu
noivo sempre cita:
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
eu estou em você
eu estou nele
em nós
Assim, se criamos uma ideia um mundo na virtualidade ou mesmo uma ideia
sobre Deus, é porque algo foi escrito no nosso corpo, nas estruturas de nossas
vidas materiais que nos possibilita crer ou viver assim. Desse modo, negar
o corpo é negar, antes de tudo, todas nossas ferramentas para conhecer o outro
(ou o Outro). O que sabemos por amor, prazer, alegria ou tristeza antes passou
por uma vivência corporal e não só isso, ainda precisa de ser corporal para ser
vivido. Quando temos uma experiência mística, por exemplo, nós muitas vezes
choramos, sentimos tremores, falamos em outras línguas, rimos e sentimos
perpassar a nossa carnalidade. Da mesma forma o virtual. Se sentimos saudade, a
dor aparecerá no corpo, no peito e só depois talvez numa foto ou num texto.
O corpo pulsa e se expande por espaços que, por incrível que pareça, a
mente não consegue alcançar, pois ele que move o campo da experiência.
Por isso, penso eu, que por mais
que Deus cristão nunca se deixasse capturar por imagens e, aparentemente,
negasse com todas as forças a representação de si, Ele nunca foi uma ideia abstrata.
Ele sempre queria estar no povo, pedindo
sacrifícios que tinham cheiro e dor. Sua história estava misturada na história
das pessoas de tal modo que quis ser um deles e morrer com eles em Jesus. E
depois de morrer, ele não deixou uma ideia abstrata conosco, mas seu Espírito
para manter o corpo para que, no futuro, houvesse enfim a ressurreição de todos
os corpos. Penso que não é a toa essa necessidade tão enfática da comunhão aqui
na Terra, com tato, vida de verdade, porque é não existe conhecer Deus sem a
experiência do corpo. Curiosamente na Bíblia o verbo “conhecer” é utilizado
tanto para o encontro espiritual como o sexual.
Então até podemos negar, dissociar
do corpo de tanto de nos envolvermos com o virtual, por exemplo, mas não
acredito que isso seja saudável emocionalmente, espiritualmente e até mesmo
psicologicamente, afinal diversas doenças mentais são causadas pela dissociação
entre mente/corpo, como a esquizofrenia. Emocionalmente, alguns de nós já
sentimos as consequências depois de tantos anos envolvidos na internet. Eu
mesma posso dizer que foi (e ainda é) difícil colocar limites nesse espaço
virtual a fim de viver com mais plenitude a experiência dos dias.
Espiritualmente, posso dizer
ainda mais, que eu entendo que seja pesado em muitos momentos sair do virtual,
pois há vídeos, textos bíblicos e grupos seguros para muitos que são marginalizados
na igreja. Recentemente mesmo vi um artigo em inglês dando sugestões para
pessoas que tem dificuldade de locomoção ou que seriam proibidas de entrar –
como uma transexual – de como manter a espiritualidade para fora da igreja.
Achei excelente e quase que traduzi, porém essa não deve ser a única opção
porque Deus não trabalha assim. Eu posso
ser uma pessoa que não gosta de gente, mas Deus gosta e nos criou com um corpo
para sermos melhores no contato.
O que fazer senão sentir? Não é
tão simples como parece, somos dessensibilizados pelo excesso de informação e
pela indiferença do mundo. Nosso corpo não liga mais se encostou alguém no
ônibus, se dói ou se está relaxado, pois somos máquina para a sociedade
capitalista.
Porém, não é isso que Deus
deseja, mas que tenhamos vida e a tenhamos em abundância.
Algumas referências:
MERLEAU-PONTY,
Maurice: A
percepção do outro e o diálogo. In:_____.A prosa do mundo.São Paulo:Cosac&Naify,2007
SANTOS, Boaventura de Sousa: Uma sociologia das ausências e
uma sociologia da emergência. In: A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. São Paulo: Cortez, 2008/
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