Existe feminismo sem as religiosas?
[Rute e Noemi, daquelas sororidades mais antigas conhecidas]
Durante uma noite de supervisão
do estágio, ouvi de uma colega feminista que faz parte do mesmo grupo de
trabalho que eu que havia entrado muitos evangélicos na nossa faculdade, de
psicologia. Ela falou isso enfatizando o caráter retrógrado desse grupo
religioso e contou-me de uma caloura, recém chegada à faculdade, evangélica,
que destilava machismo e homofobia em suas opiniões. E, com muito orgulho,
minha colega de estágio disse que fizeram uma pressão tão grande contra essa
menina por suas ideias que ela saiu da faculdade.
Essa conversa me afetou
profundamente, não porque concorde com qualquer discurso opressor, porém porque
esta tirou o espaço numa faculdade pública de uma menina de uma classe social
pobre. Uma irmã da minha fé. Alguém que ouviu algo contra aquilo que a constituía
como pessoa, dentro da faculdade de psicologia e teve que sair. E dificilmente
uma menina dessas um dia se tornará feminista.
Outra história acerca desse mesmo
tema foi em um grupo de discussões do coletivo feminista de minha universidade
quando teve o estouro de uma matéria acerca de feministas cristãs aonde, sem
nenhum medo, a grande maioria do grupo, sequer religiosa, sentiu-se no direito
de elaborar se era possível ou não uma mulher ser feminista e cristã. No meio,
havia algumas poucas, resistindo em sua fé, procurando linhas de fuga num
espaço em que é de teoria acolhedor para as demandas femininas.
Estou concluindo com isso que há
cristofobia? Que evangélicos são perseguidos no Brasil? Que a fé cristã
funciona em total acordo com o feminismo?
Não. Nada disso. De modo algum. Eu quero me adentrar por outro trajeto que
talvez seja tão naturalizado que sequer percebemos.
Lembrando um pouco da aula de História, com o fim da idade média, o ser humano começa a construir o espaço de
autonomia das instituições religiosas e, com a consolidação do conhecimento
científico, como aquele que pode desbravar o mundo por conta própria. Muitas
das áreas de conhecimento que nós estudamos enquanto universitárias vieram
desse rompimento metodológico com a igreja a fim de se produzir algo novo, laico.
E, devido a uma grande dificuldade histórica no nosso país de separar o
público/privado e, no caso, a religião e o Estado, nos é muito caro lutar pela
laicidade dos espaços públicos e, no caso, os conhecimentos universitários.
Você pode defender que o feminismo não é um conhecimento universitário,
mas, vendo de fato de onde vem as lutas, existe sim uma preponderância nesse
meio que é elitizado e não-religioso. Há mais coletivos feministas em
universidades do que em favelas. E, mesmo com um feminismo em expansão de
divulgação, vemos ainda um receio muito grande de aproximar-se do que é, de
fato, popular.
Seria, porém, exagero falar que
esse é o único motivo pelo qual o feminismo tem receio com as religiosas é seu
academicismo. Mais do que isso, o feminismo é socialista. [Há quem diga que
não, mas eu parto de um pressuposto que sim.] Sendo este revolucionário,
socialista, é filho também da modernidade e da visão da religião como
retrocesso. Apesar de Engels ter estudado igreja primitiva ao pensar o
socialismo, Marx faz uma crítica pesada a religiosidade que entorpece, que
desfoca da luta e que faz as pessoas ficarem estagnadas. Crítica legítima? Completamente legítima, porém ela abarcou um
sentimento anti-religioso muito forte que caminhou ao lado do ateísmo
que crescia na época.
Uma feminista revolucionária tem
em mente que a religião é uma barreira de luta. Barreira porque cria crenças
nas mulheres que as estagnam, que de fato são ópio. E, isso tudo é coroado com
o fato de que a religião cristã tem um histórico androcentrico. Por mais que
falemos de lugares de resistência de mulheres, de papeis importantíssimos,
ainda somos silenciadas, diminuídas. Não há como negar que na igreja, na leitura
crua da bíblia, haverá coisas que leremos tentando não ver o machismo que ali
há.
Porém, não vou me adentrar num
debate teórico sobre se é possível conciliar a fé e o feminismo porque não
acredito que há “a fé” e “o feminismo” como entidades separadas das vivências
das pessoas. E se há mulheres cristãs que se consideram feministas, não há
debate teórico que as impeça de existir e de se expressar como tal. Esse não é
meu foco.
Meu foco é outro. E aqui eu me
lembro da primeira história que citei. Afinal,
o que o feminismo quer? Ora, cada um do seu jeito, a libertação da mulher. E
qual mulher eles querem libertar? Todas porque todas sofrem alguma opressão,
né? Então, vamos analisar quem são as mulheres brasileiras.
Um pouco mais de 97 milhões de mulheres responderam ao
IBGE de 2010 e vou usar os dados que eles mapearam – apesar de ser um dado
imperfeito, cheio de questões. Dessas 97 milhões, um pouquinho mais de 6
milhões são sem religião, dentre estes 200 mil são absolutamente ateias. Os
outros 5 milhões e 800 mil, mesmo não se afirmando religiosas, não negam a
possibilidade de uma crença. Se fossemos assim pensar em de um feminismo sem
religião, nem chegando a considerar um feminismo ateu, este não chega a 10% da
população feminina do país. Então, percebemos que um feminismo assim não
representa a mulher brasileira.
“Ah, então vamos fazer um feminismo que inclui espiritualidades que para
mim não são opressivas. Desse modo, não aceito o cristianismo como uma religião
possível para as feministas.”
Eu poderia até entrar na questão
de que não existem religiões sem opressão, mas vou deixar passar essa porque
merece outro texto. Ok, então. Só que existem 85 milhões de mulheres cristãs
no Brasil (62 milhões católicas
e 23 milhões evangélicas). Você estará lutando com a demanda de 12% da população
nacional. Com uma representatividade assim, caso você seja reformista, você não
elege ninguém. E, caso você seja revolucionária, não faz revolução alguma!
Esses 12% importam? Importam. Importam muito! Importam porque
ninguém se lembra deles e precisam da luta feminista ao lado destas demandas.
Minorias vivem e tem direito de viver. Contudo, a luta feminista é para além
das minorias, é uma mudança de sociedade.
Cito aqui muito rapidamente
porque não tenho lugar de fala sobre a negra no nosso país. Um pouco mais de
300 mil pessoas no nosso país são vinculadas a religiões de matriz africanas –
que, aliás tem sido apropriada por muitos brancos deixando de ser um espaço de resistência
negra unicamente. Logo dá para perceber que a religião majoritária das negras
no Brasil não são mais a de matriz africana. Ora, você pode discordar, dizer que precisa buscar a ancestralidade,
mas hoje, agora, elas não estão. A religião mais negra do Brasil é a
evangélica e, mais especificamente, pentecostais.
Posso citar muitos outros
exemplos para entender que escolher a fé de com quem quer lutar é escolher,
também, a classe com quem quer lutar. A grande maioria das mulheres pobres não
é espírita, nem budista, nem vai para Índia meditar e as vezes pensa em Deus.
Não. A grande maioria das mulheres pobres são católicas e evangélicas.
Então, a que mulheres estamos libertando? Essa pergunta que é tão
difundida quando pensamos o transfeminismo e até mesmo o feminismo negro. Às
vezes deixamos passar esse recorte porque ele toca numa ferida, em algo que é
oposição ao feminismo. Afinal, é mais fácil expulsar a mulher religiosa. E,
mais do que isso, é mais fácil tentar forçar a barra da mulher para perder sua
fé do que aceitá-la como é. Contraditório, não?
Se você está lendo o texto e não é religiosa, pense: será que eu
sei mais da fé dos outras que elas próprias para questionar o que elas
acreditam? Será que eu sou me acho tão esclarecida a ponto de achar que 90% da
população está errada em sua fé e eu estou certa? Será que meu feminismo é tão
arrogante que não deseja, de fato, que todas possam participar e serem livres?
E se você é religiosa, gosta do feminismo, mas se sente angustiada
com o que dizem sobre sua fé: a sua fé é uma questão sua com Deus! É seu
direito e ninguém pode te negar. Muitas de nós temos visto que é possível se
reconfigurar na fé e lutar, como eu.
Chega junto, irmã. Nós nos
chamamos irmãs muito antes das feministas chegarem.
Ainda falta muito pra gente avançar principalmente, dentro da igreja, infelizmente sofremos "duplo" preconceito ainda. Por mais que ainda, dentro da denominação ainda não tenham me questionado ou me crucificado por isso, ouvir imposições de que a mulher é isso ou aquilo cabe à ela isso ou aquilo, o tema é bem complexo no nosso meio pra que seja desconstruído o machismo patriarcal dentro de nós mulheres como "cristãs". As feministas nem imaginam que dentro da religiosidade há muito mais opressão, mas acabam levando a luta feminista, a pauta para o lado de acabar com a fé das mulheres em vez de nos unirmos e combater o que realmente nos oprime e nos violenta a cada dia, que são as atitudes machistas e as leituras dos homens sobre mulheres.
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